Sempre tive a impressão, e até hoje me deixo levar por ela, de que tive uma infância privilegiada. Evidente que ao passar os olhos pelo nosso país, ainda tão omisso em relação aos seus, tive sim uma infância memorável. Nunca fui, e isso me doía pouquíssimo, daqueles garotos que tinham tudo o que queriam, pelo contrário, aprendi na base do sussurrante não, saído de forma aveludada pelas bocas de meus pais, que a vida é, desde cedo, um exercício tremendo de paciência e coragem, seja por conta da insatisfação com a impossibilidade de ter uma bicicleta ou com a impotência que nos consome, anos mais tarde, a cada estupidez cometida pelo bicho-homem.
Não tive, como ainda hoje não tenho, tudo aquilo que sempre sonhei, mas confesso que tive a infância pontuada por pequenos encantos, aquelas pequenas maravilhas, tão sutis, que sem querer nos transformam para sempre e, hoje em dia, com a velhice nos lábios, ajudam a adoçar a memória que se esvai. Um desses encantos, talvez o maior deles durante algum tempo, foi o Bosque situado atrás da casa onde morava, num pacato bairro da cidade.
O denso verde que dele escorria pelas ruas cinzentas da cidade sempre me levavam a um instante de contemplação. Ali vivi emoções intensas com a sola dos pés ardendo ao pisar em pedregulhos na derradeira corrida do pique-esconde. O silêncio, coisa raríssima nos grandes centros urbanos, embalava algumas tardes em que queria simplesmente me esconder do mundo, ou de algum parente raivoso. A sensação de liberdade de uma infância banhada em poesia, ainda tenta, com extrema dificuldade, sobreviver no adulto que tropica pelos palcos da vida, onde se esvai sua memória e suas esperanças.
Naquele pequeno quarteirão arborizado, banhado pela luz do sol, vivi a minha primeira paixão. Ela tinha os olhos claros, a pele clara como uma manhã de frio em Monte Alegre e os cabelos de um dourado que faz chorar. Ali, com a alma massacra, também tive minha primeira desilusão amorosa quando ela, bandida, escolheu como companhia o primo deste que vos escreve.
Ao anoitecer a coisa mudava de figura. O encantamento dava lugar à curiosidade, sempre advinda de um medo do nada. O breu nos chamava e, mesmo encolhidos, corríamos o risco e nos perdíamos entre as matas doces e negras da noite. Ali presenciei viciados se consumirem entre tragos e desespero. Ali, avistei um cigano depois de prensar, pela primeira vez, a fumaça sagrada de Santa Maria. Naquele pequeno paraíso fui feliz abraçado a amigos com garrafas de vinho barato nas mãos e todos os sonhos do mundo na boca pintada pela coragem que nunca existiu em nós. E ali vivi, até que se prove o contrário para esse homem desmemoriado, minha primeira experiência cênica. Enquanto espectador, é claro. E é este o motivo que, aos olhos daqueles que não conseguem identificar a poesia que surge do acaso, a estreia da série Terreiros de Dioniso pode causar estranhamento.
E ali vivi, até que se prove o contrário para esse homem desmemoriado, minha primeira experiência cênica.
Aos céticos, caretas ou implicante cibernéticos é preciso dizer logo de cara: não há lugar melhor para servir de morada ao deus dos palcos e do vinho do que um bosque centenário. Aprendi com um palhaço, daqueles que carregamos no sorriso eternamente, que cada história que se conta, por mais que seja conhecida, é contada de uma maneira diferente, pois desliza por lábios que provaram sabores diversos. Pois bem, conto uma história desde então do meu jeito. Dizem que quando retirado da coxa de seu pai, Dioniso foi enviado aos bosque para ser criado pelas ninfas e pelos seres da floresta, já que é fruto de um adultério do deus dos deuses que, como todo homem, ou deus nesse caso, derretia-se ao som do esbravejar de sua amada e corria para fazer suas vontades. Feito o esclarecimento e justificando a escolha, voltemos ao pedacinho de céu cravado no bairro do Castelo.
O Bosque dos Italianos é, pois, um desses bosques que guarda a beleza de, possivelmente, carregar seres encantados em seu ventre, e isso já justifica ele figurar enquanto primogênito dessa série que se desenha por aqui.
Ao adentrar o espaço do Bosque, pela sua entrada principal, caminhamos por paralelepípedos. O andar é calmo e é preciso se debruçar sobre cada detalhe que o lugar guarda: os pequenos insetos em suas tarefas diárias. A ousadia vertical de árvores centenárias que nos levam a contemplar o céu azul. Ao caminhar alguns metros chegamos ao parquinho, e foi ali que o Lobo Mau, em uma montagem de Chapeuzinho vermelho, me surpreendeu com um uivo que, hoje, soaria ridículo. Passando pelo Lobo, entramos no tanque de areia, que está de frente a um antiquíssimo trepa-trepa de madeira, que tem como fundo uma lousa onde é possível escrever. Ali, embaixo das escadas do trepa trepa, lembro-me da mão de Chapeuzinho alertar sobre os perigos do caminho da floresta.
Nesse brinquedo também travei batalhas épicas pendurado pelos braços enquanto chutava, impiedosamente, adversários desconhecidos. Adiante, um pouco à direita, é possível percorrer um caminho, razoavelmente íngreme, enfeitado por uma cerca de troncos de árvores, que leva á famosa casa do Tarzan. Ali era nosso local preferido quando mais velhos, onde fumávamos à vontade e bebíamos vinho barato enquanto escrevíamos canções que nunca seriam gravadas. E foi ali, na nossa futura sala de ensaios, que o Lobo devorou a velhota banguela que aguardava os doces levados pela netinha. Para descer da casa do Tarzan é obrigatório, sob pena de ser execrado cruelmente pelos seus amigos, descer pelo cano, no melhor estilo bombeiro. Ao descer damos de cara com o lugar mais disputado do parque: o balanço.
O balanço, onde me sacudo até os dias atuais, confesso, é de uma simplicidade tremenda. Com uma estrutura toda em madeira, daquelas que nos dão absoluta certeza de que agüentarão o tranco, e balanças penduradas por correntes, o que produz um som que me trás o cheiro do jatobá às narinas. Foi ali,aquelas balanças, que assisti minha musa se entregar a outro homem, na verdade éramos garotões, e saí correndo antes de chorar e piorar tudo diante de minha turma.
Nesses mesmos balanços, que me trairiam anos depois, eu avistei o heróico caçador, em pé, pronto para enfrentar o malvado lobo, e tive a clara sensação de que o mundo pode dar certo, nem que seja através da sede assassina de um caçador pastelão metido a herói tardio. Ao passar pelos balanços, é possível seguir por um caminho de pouco mais de cem passadas, que nos conduz até uma espécie de arena. Naquela arena dei meu primeiro trago em um cigarro, ali onde anos antes eu veria o caçador alcançar o lobo e trucidá-lo em praça pública, retirando de dentro de sua barriga rasgada a velhota e sua netinha cor de sangue. Senti, naquele momento, que aquele bosque era, depois daquela experiência, o melhor lugar para se estar no mundo.
Não vou mentir aqui e dizer que senti um despertar do teatro em meu peito. Não poderia. Estava, sim, encantado. Nunca havia, ao menos não que me recorde, assistido a nenhum espetáculo teatral até aquele dia. No entanto, desejava profundamente, em minha inocência infantil, que aqueles forasteiros saíssem o quanto antes daquele lugar que eu tanto conhecia e prezava. Ali, com insetos e folhas secas enquanto testemunhas, tive minha primeira frustração com o teatro. Infelizmente essa não seria a única.
O Bosque dos Italianos é, no inconsciente deste que vos escreve, o maior palco do mundo. Ali, ciente de minha pequenez diante daquelas árvores, vivi as histórias que me ajudam a sorrir quando perco-me na brutalidade do dia-a-dia. Entre aquelas matas fui polícia, ladrão, aventureiro e apaixonado. Cambaleante e descrente, encharquei alguns daqueles paralelepípedos com lágrimas quando, na adolescência, pensava sentir todas as dores do mundo.
É bem verdade que os forasteiros voltam vez ou outra, agora dentro da biblioteca reformada, que mais parece um shopping center no meio da mata, e vestem suas fantasias para a alegria da criançada. Eu, que aprendi a segurar o tranco da existência através de fantasia e muitas doses, ainda gosto de me perdem entre aquelas árvore. Vez ou outra aproveito o fim de tarde e me dedico ao mesmo instante de contemplação que experimentava há quase 25 anos atrás.
Corro, hoje com tênis, na busca desesperada por um cadinho de felicidade que possa ter esquecido no vão de um daqueles paralelepípedos. Perco-me pelo denso verde daquele quarteirão travando a maior batalha de minha vida: um pique-esconde eterno, que tenho perdido de lavada, em busca daquele menino sorridente que tinha tantos sonhos presos na garganta enquanto passeava pela imensidão daquele espaço sagrado. Quem sabe, e eu creio nisso, um dia ele se descuida e, enfim, possamos os dois caminhar de mãos dadas pra dentro de um bosque infinito.