A cidade enfim adormece. Os paralelepípedos guardam, feito um tesouro líquido que escorre rapidamente por entre as pedras, o confete e a serpentina que nos alegraram os dias. Daqui a exatos 12 meses, se bem que quando falamos de carnaval é preciso deixar a exatidão de lado, estaremos novamente mergulhados no êxtase divino da festa mais interessante do nosso calendário. Seremos novamente aquilo que bem entendermos, sem medos ou amarras sociais. Poderemos tudo e conquistaremos o mundo, mesmo que ele vá de uma esquina à outra, ao som alucinante de uma bateria desvairada. O carnaval, essa ode a carne e seus mais eróticos encantos, nos guarda o que há de mais confuso, e por isso é tão interessante, no útero da humanidade. Mário de Andrade declarou, em 1922, a fundação do “desvairismo”. No entanto, o poeta modernista sabia que aquilo que ele acabará de declarar enquanto método, o tríduo momesco já nos proporcionava anualmente enquanto folia. Graças a Momo!
Entre a certeza do poeta e os delírios desse Deus glutão, fica uma felicidade regulada que aguardamos anualmente entre a ansiedade e a esperança, salpicada pelo desespero desses anos que voam sobre nossas cabeças. A fantasia que antes era surrada em praça pública por espuma, batom e serpentina, agora repousa no armário, fria e esquecida, a espera de mais um fevereiro que pode nunca chegar. Estamos, e isso é inegável, em uma cruzada moralista que nos atormenta, basta ver a quantidade de cidades que cancelaram a festa popular. As justificativas são, além de canalhas, risíveis, mas isso é assunto pra outro texto. Com mais um fim de carnaval, marchando nessa quarta-feira cinzenta, é possível compreender que a herança de Momo vaga pelas ruas da cidade e nada mais justo do que declarar, sem pestanejar, que: o herdeiro do carnaval, essa festa de carne, é o teatro!
Em texto escrito no ano de 1936 (Do Teatro Que é Bom), Oswald de Andrade declara sobre o assunto: “há de se tornar uma realidade o teatro de amanha, como foi o teatro na Grécia, o teatro para a vontade do povo e a emoção do povo.” Pois bem, sem me prender em análises textuais desnecessárias no contexto desse texto desvairado, eu vos digo que o nosso antropófago predileto, Pai Canibal Oswaldão, há exatos 80 anos, já denunciava o fato do teatro brasileiro, que mesmo com todos os avanços estéticos inegáveis continua bem comportado, precisava deixar de ser uma mera casa de bonecas. Oswald declarava que era preciso ter estádios de teatro, não só devido à nossa paixão pelo escrete canarinho, mas porque é preciso aproximar a arte cênica de um ritual mágico e transformador onde o povo tome partido. Onde seja possível se entregar, completamente, aos encantos do desconhecido e mergulhar no abismo de nós mesmos. Para Oswald, a experiência de um teatro total está ligada a um teatro de estádio, onde o transe coletivo, como no futebol, conduz a uma experiência sensorial que nos leva a tomar consciência, e partido, diante do mundo. O teatro enquanto transe nos levará a uma existência de luta.
Pelo mesmo caminho, através do campo da libertação do inconsciente, Antonin Artaud declara em seu texto O Teatro, Antes de Tudo, Ritual e Mágico que “O teatro é, antes de tudo, ritual e mágico, isto é, ligado a forças, baseado em uma religião, crenças efetivas, e cuja eficácia se traduz em gestos, está ligada diretamente aos ritos do teatro que são o próprio exercício e a expressão de uma necessidade mágica e espiritual.”
Assim como Oswald, Artaud nos remete à Grécia, mas, no caso do teatrólogo francês, além dos ritos dionisíacos, há a questão da cultura oriental nessa afirmação. Artaud foi um grande admirador dos ensinamento do oriente, provas disso são, por exemplo, os seus escritos sobre o Teatro De Bali. O Homem-teatro tem como base o pensamento surrealista. Como todos sabem, os Surrealistas sempre se interessaram por ocultismos e enxergaram nos rituais, sejam eles religiosos ou não, uma forma de arte para a liberação do inconsciente. Benjamin Perét, por exemplo, escreveu um longo e delicado trabalho sobre o Candomblé, que descobriu em terras brasileiras. André Breton, tido por muitos como o Papa surrealista, submetia-se, frequentemente, a sessões de hipnose e flertava com qualquer tipo de alteração da consciência, tendo uma predileção por videntes e por ensinamentos ocultistas. Artaud não foi diferente. Através do teatro buscou desenvolver um espetáculo vivo que pretende suprimir a palavra (dramaturgia) pelo gesto. Seu teatro da Crueldade é a base de um ritual cênico ainda desconhecido, o que gera diversos tipos de interpretações e realizações mundo à fora.
Em ambos os casos,existe a crença -ou seria a esperança? – em um teatro que seja algo mais do que mero entretenimento. Um teatro que pulse e defenda, sim, posições, sejam elas de qualquer natureza, mas que acima de tudo liberte. Que faça um chacoalhar na alma passiva das massas. Que vibre e grite, mesmo quando o querem calado. Um teatro que, enfim, aprenda a se rebelar contra o status quo que nos oprime e maltrata.
Oswald declarava que era preciso ter estádios de teatro, não só devido à nossa paixão pelo escrete canarinho, mas porque é preciso aproximar a arte cênica de um ritual mágico e transformador.
Durante o feriado da liberdade deparei-me, num momento de epifania proporcionado pelos encantos desse Momo Dioniso, com uma possibilidade de teatro que passa, feito um carnaval, e modifica tudo o que presenciou aquele acontecimento. Algo além da carnavalização tropicalista, que, aliás, é muito interessante, mas nunca aprendeu de fato a ultrapassar os limites entre arte e vida. Um teatro impossível, invisível, que passe feito o vento que bate na copa das árvores em uma manhã de sol a beira-mar. Evidente que não sou nenhum teórico ou grande pensador dessa arte a qual tenho dedicados meus dias e minhas noites insones, mas a analogia entre o ritual cênico e o carnaval, que não é nenhuma novidade por essas bandas, me parece um negócio que ainda pode ser explorado através do ponto de vista do delírio.
O espetáculo precisa da impessoalidade de um carnaval para, através dela, desfilar sua força transformadora. Abolir, ou atacar, no palco as estruturas sociais que nos dinamitam a liberdade não é lá tarefa das mais simples. É preciso resistir bravamente diante do possível fracasso, afinal, todo carnval tem data certa para terminar e vem daí a beleza dessa orgia anual.É inegável, apesar de não me encaixar nessa turma do sossego, que o período pós-folia é algo esperado pelos brasileiros de bem que pretendem voltar às suas rotinas mal passadas em busca de uma riqueza fria para aquecer a alma que palpita. Se o teatro, feito os súditos de Momo, não tomar de assalto a vida, ele nunca saíra das grandes salas para entrar na história.
O teatro com a força de um carnaval sem fim, que toma as ruas da cidade e conquista, sem dor como Baco, os limites da consciência de uma população etiquetada. É isso o que espero para esse ano de 2016. Olho para os restos de meu carnaval com a doçura de quem enxerga, nessa xepa espiritual, o início de um teatro que cresce há muito dentro de mim. Daqui, com os pés pretos pelo barro da história e com o último cigarro encharcado pelas lágrimas de Momo, vejo que o fim dos nossos quatro dias de liberdade podem significar o início de um teatro que nunca abaixa a cabeça e muito menos se corrompe.
Abram alas, pois, para o desejo de que o teatro seja, no mínimo, um belíssimo ritual. Um carnaval infinito, sob a santa luz do delírio.