Quem tem o direito de contar a vida do outro? Sem nos darmos conta, todos nós concedemos carta branca para esta tarefa ao biógrafo, profissional que tem legitimidade de invadir a vida alheia e voltar para nos contar o que viu.
Ele personifica, de certa forma, a pulsão que temos à bisbilhotice, seja ela maliciosa ou mera curiosidade, ao fascínio de ver como vive ou viveu aquela pessoa tão interessante. Somos todos, de certa forma, incondicionalmente apaixonados por espiar dentro das fechaduras que não são nossas. Nós nos escandalizamos quando pessoas públicas, como Roberto Carlos, colocam processos nos jornalistas que se aventuraram nesta empreitada.
Esta não é uma discussão simples ou fácil, obviamente. Mas é este desafio que a jornalista Janet Malcolm enfrenta na obra A Mulher Calada (Companhia das Letras), livro reportagem que se revela como uma espécie de “biografia sobre biografias”. Tem, para tanto, um tema ideal, entendida no livro como uma alegoria perfeita ao problema das biografias: as várias narrativas sobre a poetisa Sylvia Plath, que morreu tragicamente em 1963 (ela se suicidou com o gás do fogão, enquanto os filhos dormiam no quarto ao lado), pouco tempo depois do término do casamento tumultuado que mantinha com o poeta Ted Hughes.
A morte de Sylvia precedeu a popularização de sua obra – e, de certo, estimulou que ela, Sylvia, virasse objeto de devoção de uma série de leitores, obcecados por saber como teria vivido a grande poetisa. A partir de então, todas as pistas possíveis foram aproveitadas pelos biógrafos para criar leituras possíveis sobre ela, como cartas trocadas com a mãe, trechos de seus diários e análises literárias de seus textos.
O que talvez não tenha sido previsto por seus biógrafos é que as pessoas que sobreviveram a Sylvia Plath – mais especificamente, o ex-marido Ted Hughes e sua temida irmã, Olwyn – levantariam uma verdadeira cruzada contra a veracidade destes relatos biográficos.
Em A Mulher Calada, Janet Malcolm não se dispõe a reconstituir qual seria a “versão” mais fidedigna da vida de Sylvia, e sim a investigar os processos de construção da narrativa, além de fazer suas considerações (sempre perspicazes) sobre as pedras neste caminho. Sua metodologia é a mesma de suas demais obras, tal como o brilhante O Jornalista e o Assassino (também publicado no Brasil pela Companhia das Letras).
Seus livros misturam reportagem, com uma exaustiva apuração e uma narrativa visual digna dos cânones do jornalismo literário, e o ensaio, pontuando suas conclusões pessoais acerca dos temas que aborda. Ela, efetivamente, problematiza o objeto de sua investigação, em um estilo que visa colocar mais dúvidas na mente do leitor do que efetivamente resolvê-las.
É o que ocorre nesta obra, em que Janet Malcolm se dispôs a ouvir todos os envolvidos na pendenga “quem tem direito de falar sobre Sylvia?”. Ouve todos os biógrafos, visita os vizinhos, reproduz as cartas, enfrenta a nada amigável família Hughes, discute direitos autorais, investiga os processos. É, sobretudo, incisiva nas suas opiniões.
No início do livro, logo avisa: “o biógrafo se assemelha a um arrombador profissional que invade uma casa, revira as gavetas que possam conter joias ou dinheiro e finalmente foge, exibindo em triunfo o produto de sua pilhagem. O voyeurismo e a bisbilhotice motivam tanto os autores quanto os leitores das biografias são encobertos por um aparato acadêmico destinado a dar ao empreendimento uma aparência de amenidade e solidez semelhantes às de um banco”.
Afinal, que direito temos de falar dos mortos – que já não têm qualquer palavra a dizer -, ainda mais quando os vivos ainda permanecem aqui para sofrer as consequências do que se fala?
No caso da biografia de Sylvia, outras nuances sobre o limite do biográfico vêm à tona: afinal, que direito temos de falar dos mortos – que já não têm qualquer palavra a dizer -, ainda mais quando os vivos ainda permanecem aqui para sofrer as consequências do que se fala?
Eles “perdem todos os direitos no mesmo segundo que morrem”, como escreveu Milan Kundera em A Imortalidade? Os mortos pertencem a todos nós? Temos o direito irrevogável de mexer nos seus pertences? Os parentes que restam – como Ted Hughes, o “poeta laureado” condenado eternamente a ser refém do culto em torno da ex-mulher – têm direito a cercear o que se fala sobre eles?
Para poder exercer o seu trabalho, pontua Janet Malcolm, o biógrafo não tem direito a estas dúvidas, que desarmonizariam todo o sistema da produção de histórias de vida. A tarefa do biógrafo e do jornalista, acredita a escritora, “é satisfazer a curiosidade dos leitores, e não demarcar seus limites.
Sua obrigação é sair a campo e, na volta, entregar tudo”. De alguma forma, ela sugere, somos todos cúmplices dos possíveis excessos das biografias, pois, em suma, elas existem para atender às nossas demandas.
A Mulher Calada, no fim das contas, não trata apenas das questões da escrita biográfica, mas traz importantes reflexões sobre a narrativa literária em geral. Janet Malcolm joga luz sobre os processos de construção das personagens nos livros (que nas biografias enfrenta o desafio de lidar – ao menos em tese – apenas com aquilo que comporta a realidade).
Por exemplo: ao querer compor um personagem que seja um vilão, ela lembra, não basta dizer que fulano era uma pessoa horrível, o que tende a criar a simpatia do leitor por ele, mas sim usar as mais delicadas estratégias retóricas para que o leitor chegue a este resultado. Esta é a grande complexidade (e limitação) em se colocar pessoas no papel: se no plano do inconsciente é perfeitamente possível ser bom e mau sem contradição, amar e detestar alguém na mesma medida, no texto estamos necessariamente condenados a significar aqueles que narramos de modo verossímil.
Por fim, sobram reflexões até sobre os paradoxos da narrativa jornalística, escancarando uma questão que nenhum jornalista gosta de admitir: o fato de que poder escrever sobre algo ou alguém nos coloca, inevitavelmente, em uma situação de poder.
Escrever é sempre estar acima daquele sobre quem escrevemos, e estas pessoas nunca têm condições de “revidar” na mesma moeda, caso tenham alguma discordância. “A liberdade de ser cruel é um dos privilégios incontestes do jornalismo, e tratar as pessoas como se fossem personagens vagabundos é uma das suas convenções mais amplamente difundidas”, aponta, não sem alguma malícia, a sempre incrível Janet Malcolm.
A MULHER CALADA | Janet Malcolm
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Sergio Flaksman;
Tamanho: 240 págs.;
Lançamento: Abril, 2012.
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