Há uma jogada de mestre tanto na direção quanto no roteiro de Para Minha Amada Morta, longa-metragem do cineasta Aly Muritiba, rodado em Curitiba e região. O filme, em cartaz desde quinta-feira, brinca com grande habilidade com as expectativas do público, recorrendo a aparentes convenções de diferentes gêneros, como o thriller e o melodrama, para daí subvertê-las, em uma narrativa ao mesmo tempo intimista e bastante tensa, que se desdobra sem pressa e resulta em um dos melhores filmes lançados em 2016.
No centro da trama está o advogado Fernando (Fernando Alves Pinto, de Terra Estrangeira), que ganha a vida como fotógrafo da polícia. Quando o filme se inicia, ele está em luto pela morte da mulher Ana (Michelle Pucci), que deixou com um filho pequeno e muitas recordações felizes.
Na tentativa de lidar com a perda, e matar as saudades que sente da esposa, também advogada, ele passa horas assistindo a fitas de vídeo com imagens de diferentes períodos de sua vida. Até que, em uma delas, se depara com o inesperado: a mulher que tanto amou teve um romance com outro homem, e registrou esses encontros íntimos em detalhes.
É devastador o impacto da descoberta sobre Fernando, que fica obcecado por descobrir quem é aquele homem, e o que, de fato, existiu entre ele e sua amada.
Muritiba, diretor dos premiadíssimos curtas-metragens A Fábrica e Pátio, ambientados no universo carcerário (o diretor foi agente penitenciário), de certa maneira dialoga com o tema, mas de forma bem mais indireta, que não cabe aqui revelar. Com seus trabalhos anteriores de ficção, Para Minha Amada Morta tem em comum a engenhosa carpintaria do roteiro, que no longa sugere quase o tempo todo que a história desembocará em algum clichê do cinema de suspense, com toques melodramáticos. Só que não é bem isso que acontece.
Fernando, em sua busca pela verdade, acaba se aproximando perigosamente do amante da esposa, Salvador (Lourinelson Vladmir, em ótima atuação – confira aqui um perfil com o ator). Essa proximidade, que se dá de forma lenta e gradual, é conduzida com admirável controle por Muritiba, que constrói uma relação marcada por uma bem-vinda ambiguidade, que mantém o espectador em estado de tensão, e dúvida, durante todo o filme.
Escapando dos chavões e dos cartões-postais, a Curitiba de Para Minha Amada Morta capta a temperatura e a luz da cidade pelas lentes da introspectiva fotografia de Pablo Baião.
Isso já parece estar no roteiro, mas se acentua no elaborado trabalho do baiano radicado em Curitiba, reconhecido no Festival de Brasília do ano passado com o Candango de melhor direção, além do prêmio de melhor filme pelo júri da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine) e troféus nas categorias de edição (João Menna Barreto), fotografia (Pablo Baião), direção de arte (Monica Palazzo), ator coadjuvante (Lorinelson Vladmir) e atriz coadjuvante (Giuly Biancato, que vive a filha de Salvador). Apostando em um tom intimista, ele constrói planos muito intrigantes, que escapam ao óbvio, mais sugerindo do que mostrando, e nos coloca dentro da trama. Prestem atenção ao esplêndido plano-sequência envolvendo o cão da família de Salvador no último terço do filme.
Escapando dos chavões e dos cartões-postais, a Curitiba de Para Minha Amada Morta capta a temperatura e a luz da cidade pelas lentes da introspectiva fotografia de Pablo Baião, assim como detalhes de sua arquitetura urbana e suburbana, representadas pelas casas de madeira que começam a desaparecer. Os diálogos são econômicos, precisos, e a serviço de um elenco também muito bem conduzido, que tem como grande destaque a atuação econômica e contida de Fernando Alves Pinto, para quem menos é sempre mais.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.