O diretor Michael Haneke é um artista necessário. Sua obra confronta, incomoda, faz pensar sobre aspectos sombrios da condição humana e do mundo contemporâneo. Vai na contramão do cinema de entretenimento, que quase sempre busca recompensar o espectador com um final feliz, ou uma lição de vida edificante, esperançosa. Talvez, por isso, seja tão espantoso que Amor, que já havia conquistado a Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, tenha sido indicado ao Oscar em cinco categorias, entre elas a de melhor filme, feito raro para uma produção falada em um idioma que não seja o inglês.
Há quem diga que Amor conquistou a crítica norte-americana porque revela um Haneke mais terno, menos devastador e violento do que o visto em A Professora de Piano, Caché ou A Fita Branca. Talvez isso seja verdade, em termos. Mas engana-se quem for vê-lo na expectativa de assistir a uma trama romântica que enaltece o eterno amor de um casal no fim da vida.
Estupidamente tocante e, lá à sua maneira, também romântico, Amor é um antimelodrama, um soco no estômago emocional. Justamente porque retrata, sem artifícios, a extensão de um sentimento que, apesar de imenso, não é capaz de driblar o inevitável.
Georges (Jean-Louis Trintignant, de Z e Um Homem e uma Mulher) e Anne (Emanuelle Riva, de Hiroshima, Mon Amour) são um casal de pianistas clássicos octogenários, que vive em um amplo e confortável apartamento parisiense. A rotina dos dois, serena e até certo ponto previsível, muda traumaticamente quando Anne, durante uma cirurgia de desobstrução da veia carótida, sofre um acidente vascular cerebral e fica com metade do corpo paralisada.
Haneke, ao não fugir dos chamados tempos mortos – momentos do filme em que, aparentemente, nada acontece em cena –, reforça o tom angustiante da narrativa, o que a aproxima de outras de suas obras.
Condenada a se locomover em uma cadeira de rodas, Anne, antes uma mulher ativa e independente, se vê limitada e forçada a recorrer ao marido para quase tudo. Ele se desdobra para manter a vida dos dois dentro de uma relativa normalidade, mas tanto ele quanto ela são pessoas esclarecidas e sabem que nada será como antes. Ainda assim, preferem não ter de recorrer à filha, Eva (Isabelle Huppert), que vive na Inglaterra com o marido e os filhos.
À medida em que a saúde de Anne entra em declínio, e sua dependência de Georges aumenta, ela começa a mergulhar em estado de profunda angústia. De depressão mesmo, o que só agrava seu estado físico. No entanto, ele não desiste de tentar ajudá-la com uma devoção ao mesmo tempo inspiradora e dilacerante, já que movida por um inconformismo latente,
Haneke, ao não fugir dos chamados tempos mortos – momentos do filme em que, aparentemente, nada acontece em cena –, reforça o tom angustiante da narrativa, o que a aproxima de outras de suas obras. O crescente clima de tensão entre Anne, inconformada com seu estado, e George, que insiste em mantê-la viva e lúcida, extrapolam os limites da tela e contagiam o espectador, que não têm outra opção a não ser pensar sobre a incontornável finitude de suas próprias existências.
As brilhantes atuações de Trintignant e Emanuelle, que aos 85 anos é a mulher mais idosa já indicada ao Oscar de melhor atriz, são espetaculares. Mas Haneke, alemão criado na Áustria, não faz de seu filme (apenas) uma vitrine para o talento de seus atores. Prefere dissecar aos mínimos detalhes esse amor que parece tão precioso e improvável em tempos regrados pelo individualismo, pela solidão.
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