Nesta semana, talvez você tenha se deparado com algum cartaz de campanha ou flores amarelas por aí. São alusivas ao 18 de maio, dia nacional de combate ao abuso e à exploração sexual infantil. Data séria, para lembrar, lutar e denunciar abusadores e exploradores de menores de idade.
Os números não são animadores e, infelizmente, um pouco confusos, já que há várias fontes e cada uma delas usa diferentes metodologias e não separa a violência física da sexual (em geral, estão mesmo interligadas). Mas vejamos:
- Dados da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) dos quatro primeiros meses desse ano, indicam que no período foram recebidas 4.953 denúncias sobre exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes. A maior parte das vítimas são as meninas, e os agressores, em geral, estão no âmbito familiar. Entre os denunciados, estão a mãe (12,7%), o pai (10,54%), o padrasto (11,2%) ou um tio da vítima (4,9%), ou outras pessoas próximas, como líderes religiosos ou professores.
- Números mais gerais, da Unicef, indicam que diariamente, são 129 denúncias de casos de violência psicológica e física, incluindo a sexual, e negligência contra crianças e adolescentes, feitos por meio do Disque Denúncia 100.
- No Paraná, em 2015, foram registrados 3.020 casos de violência sexual e física contra as mesmas vítimas – crianças e adolescentes – de acordo com a Coordenadoria de Análise e Planejamento Estratégico da Secretaria de Segurança Pública do estado.
- É preciso encarar outro aspecto desta triste realidade: há muitos casos que não chegam a ser denunciados e mantêm-se no silêncio aprisionador, por vezes ao longo de muitos anos ou pior, para sempre, sendo refletida em outros aspectos da vida da vítima ou tornando a vítima potencial novo agressor.
Como lidar com essa dicotomia insana? Por um lado, pesquisadores afirmam que vivemos em uma ‘ditadura das crianças’. Observando sob outro aspecto, cresce o número de denúncias de violência física e sexual contra crianças e adolescentes
Estava pensando nestes números, tão desoladores, quando lembrei de uma entrevista com a psicanalista Marcia Neder, que a Folha de São Paulo publicou há cerca de duas semanas. A pesquisadora, famosa por dizer que as mães não precisam ser tão complacentes com os pequenos, lançou um livro, Os Filhos da Mãe (Editora Leya). Ela alega que existe uma onda concreta de idolatria à infância – a infantolatria, surgida nos países ocidentais, no século passado, que levaria pais e mães à loucura com filhos “ditadores” e pouco afeitos às negativas; o que geraria um sentimento de constante culpa por parte dos cuidadores.
Para ela, a posição central dos filhos afeta a vida familiar, os vínculos entre o casal enfraquecem e a mãe assume um papel total de devoção às crias que não a permite viver a própria vida ou ter o sacrossanto tempo destinado ao ócio. Autora de outros livros na mesma área, Marcia reafirma que o poder familiar está na mão das crianças.
É consenso entre os educadores – principalmente entre os da educação infantil – que os pais, por insegurança ou por suas próprias histórias de vida, acreditam que não estar o tempo todo focado nos filhos é uma forma de negligência, o que resultaria na superproteção. Assim, vemos pais sacrificando-se pelos filhos.
Lados opostos
Como lidar com essa dicotomia insana? Por um lado, pesquisadores afirmam que vivemos em uma “ditadura das crianças”. Observando sob outro aspecto, cresce o número de denúncias de violência física e sexual contra crianças e adolescentes.
Como que há uma infantolatria em curso, se elas são tão maltratadas e violentadas?
Duas informações completamente opostas que aparecem cotidianamente na mídia, ou seja, passam a fazer parte do nosso repertório e bagagem cultural. Estamos todos dentro do mesmo planeta mesmo? Então por que crianças vivem sob realidades tão distintas? Há algo errado ou alguém está contando a história de um jeito simplista demais?
Infelizmente, caminhamos, em diversos aspectos, para os extremos. Seja na política, nos negócios, nos relacionamentos, na educação. E também na representação das crianças. Até porque, as crianças são o espelho do mundo adulto e são vistas como negligenciadas ou como superprotegidas. Nos dois casos, observadas como sendo um grande problema. “O exemplo arrasta”, diz o velho ditado repetido por todas as pessoas com mais de 60 anos que eu conheço.
Crianças não são apenas as vítimas de violência ou os opressores do mal, causadores de muitas agruras. Em geral, são o resultado de cuidadores e da sociedade que também anda doente, que não aceita opiniões contrárias, que não dialoga, que vive no eterno Fla X Flu potencializado pelas rixas por meio das redes sociais.
Os adultos precisam entender e viver a pluralidade. Entender que somos mais plurais passa também por representatividade maior e mais ampla de várias camadas da sociedade, incluindo a infância. Precisamos de mais espaços de lazer, mais cultura (e não menos), mais educação, mais informação para que as crianças e adolescentes não sejam vistos e nem repitam essa querela ou o estado de hostilidade. Precisamos de novos e mais símbolos e práticas culturais para que a formação da identidade dos indivíduos os transforme em adultos autocríticos, plurais e empoderados.
Sendo plurais, também conseguiremos transmitir mais serenidade e equilíbrio às crianças, que não podem viver entre extremos nem devem ser retratadas apenas de tal forma. O mundo todo precisa de terapia? Parece que sim, hein. Dessa forma, poderemos ser (pelo menos na maior parte do tempo) adultos mais aptos a cuidar dos pequenos, sem machucá-los nem colocá-los em um pedestal.
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