“Na época de confusão em que vivemos, época carregada de blasfêmias e das fosforescências de uma renegação infinita, onde todos os valores tanto artísticos quanto morais parecem dissolver-se em um abismo do qual nada em nenhuma das épocas do espírito pode dar uma ideia, tive a fraqueza de pensar que eu poderia fazer um teatro, que eu poderia pelo menos encetar esta tentativa de dar de novo vida ao valor universal do teatro, mas a estupidez de uns, a má-fé e a ignóbil canalhice de outros me dissuadiram para todo o sempre.”
Antonin Artaud, 08 de janeiro de 1927.
Passaram-se cinco anos da semana. Oswald de Andrade flerta com o comunismo enquanto passeia por Paris. Avec moi… Villa-Lobos calçou os sapatos para dinamitar a casa grande. Mário tem o coração partido e o jabuti que canta a revolução de toda manhã. No Brasil de pau e cimento, traçamos uma indigesta merenda de café, queijo e incontinência verborrágica. Sim, somos a antítese do cuidado. Um país rumina os ídolos de ontem para mastigar fantasmas do futuro.
Passaram-se noventa e quatro anos da semana. Oswald de Andrade sobrevive: somos antropófagos perdidos no meio da nada. Villa-Lobos, de charuto nos lábios, conduz o trem de nossa desgraça pelos caminhos do saudosismo. Mário se reduziu ao verbo intransitivo do horror. Somos o resultado de brincadeira de péssimo gosto. Um país em ruínas trucida, pouco a pouco, a esperança daqueles que insistem no futuro de uma nação eternamente acorrentada ao seu passado.
Vivemos em uma época de horror, onde a violência se alastra e a estupidez institucionalizou-se enquanto método.
Vivemos em uma época de horror, onde a violência se alastra e a estupidez institucionalizou-se enquanto método. Uma época de confusão e aflição, tempos onde é impossível controlar a raiva e o desespero. Estamos condenados a viver à sombra de uma mãe pátria violada. Somos filhos de um solo infértil, submetido a débeis coronéis, placidamente culpados pela doença do existir. Nesse cenário ingrato, controlado pelas esferas putrefatas do poder, insistimos ainda na fraqueza de dar, de novo, vida a um teatro. De encontrar no assombro da noite, motivos para acreditar no poder de transformação dessa arte.
Eis o culpado dessa mania atordoante de dar razão a um descompasso: o teatro! A escuridão, dizem, não passa de uma extrema ausência de luz. Por mais que se acredite nessa verdade absoluta, é impossível negar que tal afirmação, mesmo corroborada pela ciência, é detentora de um otimismo tremendo. Afinal, aqueles que vivem eternamente na escuridão reconhecem na luz um simples intervalo, aquele momento de transição em que, apesar da luminosidade, identifica-se a negritude de um abismo no horizonte. Talvez estejamos todos condenados ao eterno breu da impossibilidade.
Há uma semana exata não sabemos mais o que pensar. Se desistimos dessa mania torta e torturante de insistir, ou se continuamos na luta, crentes de que há uma saída onde a vida doa menos e os dólares não nos causem pesadelos. Temos fé no veneno. Temos fé no veneno do palco por saber que cada passo dado, que cada personagem pode transformar aquilo que hoje nos causa a náusea. Temos lutado tanto e a tanto tempo que mesmo a solavancos ainda cremos. Cremos que ainda é preciso cantar ante a lágrima que insiste em nos talhar a face. Cremos em uma linguagem viva que habita os sonhos, no cheiro da madeira gasta daquele tablado onde nunca esperamos, somos! Somos filhos da coragem, da insistência e reféns do amor. Velhos ou moços, eternos ou mortos, somos o Brasil que não se entrega. A velha conhecida trupe moderna que incendeia os lábios da princesa. Vivemos em um espetáculo de chamas e talvez sejamos a própria labareda desse nosso transtorno, dessa nossa eterna inconstância.
Cantamos a sonata dos desesperamos e, não por acaso, estamos roucos nesse impávido palco. Destroçados no mapa-mundi do teatro. Somos o feto de Artaud recém-encarnado. O filho pródigo de um teatro abortado.
Se por um acaso, num instante impensado nos acharam derrotado, esqueçam esse nosso lado aflito. Persistiremos inabaláveis, crentes que nem mais um gesto do teatro nos será escapado. Todo teatro carregará em si a fatalidade do mundo e a misteriosa ressurreição da vida. Nossa existência jamais será perdida enquanto enxergamos no fim do caminho aquele foco onde é possível dizer tudo o que nos sufoca.
O lugar do teatro nunca foi a prisão, esse calabouço social onde a vida tarda. Por isso de antemão gritamos aos quatro cantos do mundo: o único aborto que nos interessa é o da miséria humana, essa mesma que lhe assegura a ordem.
Uma nova odisséia será escrita com a combustão dos versos de um poeta do palco.
Estejam preparados!