Raramente sigo conselhos de leitura que surgem da indicação de autores ou publicações quando estas constam apenas na orelha ou contracapa de uma obra. Mas admito que este ano rompi com minha própria barreira e mergulhei em uma sugestão do mestre do suspense literário, Stephen King. Agora é importante frisar que não fiz isto sem uma prévia pesquisa sobre a obra e sua autora.
Karen Russell é um dos nomes mais proeminentes na literatura de suspense na atualidade. Finalista do Pulitzer de Ficção em 2012, apontada pela revista New Yorker como uma das melhores jovens escritoras norte-americanas com menos de 40 anos, do alto de seus 35 anos, a indicação de King parecia apenas a certeza de que Doadores de Sono (166 págs.), lançado pela editora Record, merecia ser lido.
O livro mexe com a mente de seu leitor ao não seguir uma estrutura focada unicamente no suspense ou na ficção, e tudo fica maior se você já tiver lido Cem Anos de Solidão. Há uma delicada inspiração na obra de Gabriel García Márquez que chega a causar um certo conforto ao coração do leitor das obras de Gabo. Mas calma, as referências à obra do colombiano são sutis.
Doadores de Sono acompanha Trish Edgewater, uma integrante da Corpo do Sono, uma organização que surge após uma epidemia assolar os Estados Unidos. Do dia para a noite, milhares de pessoas perdem a capacidade de dormir, passando a viver suas vidas com insônia. Dori, a irmã de Trish, foi uma das primeiras vítimas da insônia letal, o que motivou a entrada dela na Corpo do Sono, organização responsável por persuadir sonhadores saudáveis a fazer doações para os insones. A organização é liderada pelos irmãos Storch, figuras enigmáticas que acabam, a partir da descoberta da Bebê A, a primeira doadora universal de sono, fazendo com que Trish fique desconfiada das motivações da organização e dos irmãos.
Russell arquiteta o enredo de sua obra de forma interessante, construindo uma trama de suspense cheia de dramas, pitadas filosóficas e até mesmo realidade.
Russell arquiteta o enredo de sua obra de forma interessante, construindo uma trama de suspense cheia de dramas, pitadas filosóficas e até mesmo realidade. Insônia mortal não é uma doença ficcional. Ela é uma deficiência genética extremamente rara, mas ainda assim existente e fatal. O grande acerto de Russell é tratar essa doença evocando um certo terror psicológico norte-americano pós-ataques de 11 de setembro de 2001. E a autora vai além, dando margem à reflexão sobre nossas percepções sobre as memórias afetivas, sobre os sonhos, sobre o poder das ONGs, além de fazer uma ácida crítica às sociedades contemporâneas e nossa obsessão pelo universo tecnológico e digital, grande responsável no mundo por crises de ansiedade ligadas à insônia – e outras doenças.
Karen Russell sabiamente opta por tratar isso sem deixar explícita as causas, por isso a razão da epidemia permanece um mistério, desenvolvendo inúmeras hipóteses, que vão desde uma mudança nas marés oceânicas, passando pelo magnetismo, um problema com os polos ou mesmo os hemisférios. Há, ainda, grupos que atribuem à tecnologia e nosso universo de informações infinitas a causa da epidemia.
Admito que em alguns instantes Doadores de Sono me trouxe à memória alguns aspectos da literatura de Pedro Bandeira e sua série “Os Karas”, o que não se trata de demérito, apenas a sensação de que alguns trechos soavam exageradamente juvenis, esmiuçados, o que poderia até ser resultado da tradução – mas não uma culpa da tradutora, diga-se.
Por sorte, a autora escreve com tanta segurança, provavelmente fruto de sua larga experiência com seus elogiados contos, produzindo um encantamento no leitor que se vê preso ao livro, procurando decifrar esse universo tão próximo do nosso, mas com suas próprias regras e rituais. Talvez a inclusão e o tratamento dado ao Doador Q, um dos elementos chaves de Doadores de Sono, pudesse ter sido melhor definido, mas Russell consegue criar um certo equilíbrio com o desenvolvimento e os conflitos de Trish, resultando em um livro instigante e tranquilamente próprio para ser lido em uma sentada.