Publicada em 1954 na revista The Vault of Horror, a história “…And All Through the House” acompanha uma mulher espera a filha dormir para matar o marido na véspera de Natal. O plano dá errado quando um maníaco assassino, vestido de Papai Noel, aparece do lado de fora da casa. Enquanto a mãe se livra do corpo, a menina acorda e, na expectativa dos presentes, deixa o homem fantasiado entrar.
A trama é um ótimo exemplo de como o horror pode subverter a segurança e a familiaridade de uma ideia tão cristã quanto o Natal. A editora E.C. Comics, responsável por The Vault of Horror, foi uma das especialistas no assunto. A ponto de ser acusada de corromper seus leitores e se tornar uma das responsáveis pela perseguição ao mundo dos quadrinhos por pais e políticos conservadores na década de 1950.
“…And All Through the House” também parece um interessante comentário sobre o papel de Papai Noel na sociedade norte-americana. O historiador Gerry Bowler, no livro Papai Noel – Uma Biografia, explica que o mito do bom velhinho tomou a forma como o conhecemos por meio de poemas e peças publicitárias produzidas nos Estados Unidos ao longo do século XIX. Antes disso, o mito do presenteador remetia ao imaginário europeu – nem sempre tão bondoso.
A ideia de dar presentes na celebração do nascimento de Jesus Cristo é geralmente associada aos Três Reis Magos, mas tem origem em rituais pagãos anteriores. Durante a Idade Média, a prática se cristalizou na figura de São Nicolau.
Se o horror é um gênero que preserva como uma de suas maiores características a construção de ameaças em locais seguros e familiares, parece natural que o Papai Noel se torne um dos monstros dessas narrativas.
Por volta do século XII, o santo era representado como um homem bondoso, que não se furtava em castigar com o chicote quando preciso. Essa dualidade permaneceu no mito por algum tempo, com o personagem presenteando os bons e açoitando os maus. Imagino que a lista que divide os comportados dos desobedientes venha daí.
Na história de The Vault of Horror, a protagonista parece receber a visita dessa representação mais perversa de Noel como punição por ter assassinado o marido. A trama, porém, pode não ter sido compreendida assim, visto que obras como Seduction of the Innocent, do psiquiatra Fredric Wertham, denunciavam o modo como a E.C. Comics incentivava os jovens à violência.
A polêmica da representação pode estar na maneira como os norte-americanos podem ter trabalhado o Papai Noel como uma espécie de patrimônio nacional. Em seu livro, Bowler cita que o legislativo do país tentou, em vários momentos dos séculos XIX e XX, aprovar medidas que protegessem o imaginário e a crença das crianças na lenda do bom velhinho. Em 1948, preocupada com o excesso de fantasias do personagem nas ruas, que gerava dúvidas na cabeça dos pequenos, a cidade de Boston debateu uma moção para limitar os Papais Noéis na região. A proposta foi rejeitada, logicamente.
A necessidade de preservar a inocência da imagem do rei do Pólo Norte não é exclusiva da terra de Donald Trump. Aqui no Brasil, uma capa da revista Playboy em que o Papai Noel segurava os seios da cantora Carla Perez provocou revoltas em pais no ano 2000. Um grupo de atores que interpretava o personagem usou faixas pretas de luto em protesto contra a publicação.
Se o horror é um gênero que preserva como uma de suas maiores características a construção de ameaças em locais seguros e familiares, parece natural que o Papai Noel torne-se um dos monstros dessas narrativas. Aliás, isso tem sido bastante comum. Somente “…And All Through the House” foi adaptado duas vezes para as telas, no filme Contos do Além (1972) e no segundo episódio da série Tales from the Crypt (1989 – 1996). A lista inclui também inclui Papai Noel das Cavernas (2010), Uma Noite de Fúria (2006) e O Santo (2010), entre outros.
O lançamento de Natal Sangrento (1984) talvez tenha sido a mais barulhenta obra de horror a retratar o bom velhinho como um assassino. Com uma publicidade bem agressiva, a produção slasher angariou revolta entre críticos e associações religiosas, que organizaram boicotes contra a estreia. As manifestações não impediram o sucesso do longa-metragem, que contava a história de um adolescente, traumatizado pela morte dos pais, que tem um surto psicótico e decide matar os travessos na noite de Natal.