Inverno, o segundo disco do cantor e compositor carioca Marcelo Perdido, é, para mim, um dos melhores trabalhos lançados em 2015. Belíssimo registro da música brasileira, elogiei-o muito em outro texto aqui n’A Escotilha, com sua pegada conceitual da estação mais fria do ano, do inverno como estado de espírito, como na estética do frio de Vitor Ramil. Junto disso, duas sensações que são constantes na música de Perdido: a de ser passageiro e a de não ter pressa. A sensação de sair da cidade pequena, se mudar para São Paulo e ser engolido, veio junto de um espírito que ele já cantava em canções do seu projeto anterior, a banda Hidrocor, lá por 2012, em letras como “enquanto todo mundo vai correndo, eu vou lento”.
Menos de dois anos depois de lançar Inverno, Marcelo Perdido mudou de terras e lançou seu terceiro disco de estúdio, Bicho, em dezembro. Uma época em que todo mundo estava correndo, enquanto ele veio lento. Hoje o músico mora em Portugal, e muito do seu novo disco vem da mudança de ares e da saudade do país natal. Se no disco anterior ele procurava um aconchego, como explícito na arte de capa, o cavalo e o urso que esquentavam o narrador naquele inverno hoje estão com ele na água, sendo levados pela maré, sem um esforço aparente para sair. Depois do frio cinza de São Paulo, Perdido canta, hoje, sobre se mudar para um lugar onde precisa de calefação.
‘Pegamos a paralela que a vida na via expressa já não nos interessa.’
Mas se o inverno passou, o músico segue sua jornada pelas estações. Passado o frio, foi vez de desabrochar, alçar voo e aproveitar a primavera. A renovação que a primavera traz é algo forte em Bicho, como fica claro no trecho da música “Passarinha”: “eu sobrevivi ao frio da outra estação /sobrevivemos outra eleição / sobrevivemos ao campeonato Brasileiro de futebol / respeito as paixões mas prefiro gostar só dela / prefiro a primavera, a vida é fora da janela”.
E não é a única citação da estação na obra, que volta em “Primavera em mim”, faixa em que Perdido retoma a parceria com o músico João Erbetta (que produziu Inverno) e relembra lá os tempos de Hidrocor em que dizia ir lento, agora na forma de uma renovação primaveril: “pegamos a paralela que a vida na via expressa já não nos interessa”.
Se São Paulo é essa via expressa que não para, em Portugal o músico teve a pausa para pensar. E Bicho é um mergulho em prosas poéticas que transitam por assuntos que o atingem, desde a condição de imigrante até o momento político do Brasil que, categoricamente, vem em uma faixa em parceria com o português Filipe Sambado (que assina a produção do álbum). Se ainda fazemos piadas de português, Perdido recruta um para cantar em “Empate” sobre a necessidade brasileira de polarizar tudo e se manter no ataque, sem brechas, tornando impossível conviver com quem tem opiniões diferentes. “Eu cresci do seu lado, lembra?”, canta, como quem tenta colocar alguma razão na amizade desfeita por uma briga política no Facebook. Chega a ser quase de utilidade pública nos tempos atuais o trecho em que Perdido e Sambado dizem “Desarmemos o ataque / para não cairmos todos por nocaute / o mundo quer viver polarizado / mas morre lado a lado deitado de concha”.
Musicalmente, as composições do novo disco mudam um pouco do que nos dois trabalhos anteriores. Em Bicho, o músico experimenta mais em algumas batidas diferentes que fogem do folk de violão e violino que existia antes. Mas são mudanças que ficam mais perceptíveis nas faixas iniciais do disco de 35 minutos, voltando ao estilo tradicional do meio para o fim. O que não muda é o minimalismo e a sutileza que são marcas de Marcelo Perdido, mesmo ao falar de temas mais pesados como em “Isabela” e a subjetiva mensagem contra o mundo machista.
No Brasil ou em Portugal, Marcelo Perdido é um dos melhores da nova música brasileira na arte de transformar em canção o dia a dia. Os pequenos-grandes dilemas diários. A vida, o clima, as sensações e a nostalgia são as inspirações dele, e todas ainda transbordam em seu terceiro disco. Sua viagem pelas estações já passou pelo outono, inverno e, agora, primavera. Que o verão renda mais boas canções.