Há algum tempo, a Rede Globo vinha se mostrando solidária e favorável à luta contra a violência de gênero. Nós sabemos que a questão do empoderamento feminino é uma das pautas mais borbulhantes do momento e que esse súbito interesse da emissora é quase que inteiramente comercial, como já foi analisado anteriormente pelo portal (veja aqui). Mas não podemos negar que, independentemente de quais forem as motivações, é importante para a causa que o assunto seja mostrado pelas grandes mídias, pois revela que o tema incomoda e não pode mais ser ignorado.
A emissora estava indo bem. O assunto já apareceu várias vezes em debates e reportagens nos programas matutinos diários. A última edição do aclamado Amor & Sexo usou e abusou na desconstrução do tema e, recentemente, a emissora se posicionou contra três homens que estavam no ar em sua grade de programação quando eles se envolveram em polêmicas envolvendo situações de agressão e abuso.
Contudo, como ainda vivemos em uma sociedade machista, mesmo a Rede Globo tendo tomado medidas punitivas nos três casos, quando se trata de alguém importante e influente, a mulher que denuncia é alvo de dúvidas. Por isso, se espera que essa culpabilização da vítima seja um fator a ser combatido. Só que não é isso que a teledramaturgia da emissora está fazendo.
A mesma empresa que há pouco mais de um mês incentivava a campanha #MexeuComUmaMexeuComTodas faz um desserviço à sociedade ao exibir em duas novelas diferentes histórias de mulheres que fazem falsas denúncias de agressão.
Nos capítulos dos dias 18 a 22 de maio, pudemos acompanhar em Rock Story as cenas nas quais Mariane (Ana Cecília Costa), influenciada por Lázaro (João Vicente de Castro), gravou um vídeo acusando Gui (Vladimir Brichta) de tê-la empurrado da escada após uma briga (veja a cena aqui). A denúncia se espalhou rapidamente. Seu filho, Zac, acabou descobrindo o que realmente aconteceu e por causa dele Mariane deu uma entrevista para contar a verdade (veja aqui).
Segundo a coluna de Maurício Stycer e spoilers já divulgados pelo Gshow, a personagem Cibele (Bruna Linzmeyer) irá seguir pelo mesmo caminho em A Força do Querer. No capítulo previsto para ir ao ar na próxima segunda-feira (29), ela irá discutir com Ruy (Fiuk). Ela, então, irá à delegacia e vai dar uma outra dimensão ao episódio, fazendo alegações graves e pedindo uma medida protetiva.
Nas duas tramas, os acusados são ex-namorados das personagens. Por isso, essas falsas denúncias podem passar a ideia de que elas não superaram o fim do relacionamento e, por isso, inventaram as agressões. O canal está reforçando um velho estereótipo de que as mulheres são descontroladas e que mentem para poder ficar ou se vingar dos seus ex-companheiros. Na novela das sete, as personagens de Alinne Moraes e Nathalia Dill chegaram a fazer comentários sobre como uma denúncia falsa pode ser prejudicial para à luta feminina.
Os dados de violência contra mulheres são alarmantes: só de agressões físicas são 503 mulheres brasileiras vítimas a cada hora, sem contar as ofensas e ameaças (confira dados aqui), e de acordo com um levantamento da ONU, o Brasil é o quinto país num ranking mundial de feminicídio. Uma pesquisa feita pelo Datafolha mostrou que, entre as mulheres que sofreram violência, apenas 11% procuraram uma delegacia da mulher e 52% delas preferiram se calar. Isso significa que apenas uma parcela das mulheres que sofrem violência tem coragem de se pronunciar.
As tramas reforçam em seu público uma imagem equivocada, passando a mensagem de que as vítimas podem não ser tão vítimas assim. E é exatamente essa ideia perigosa que impede que muitas procurem auxílio para sair de relacionamentos abusivos ou denunciar seus agressores.
Em um momento em que se tenta a todo custo dar algum amparo para mulheres que sofreram algum tipo de crueldade masculina e mostrar a elas que é preciso falar, as tramas reforçam em seu público uma imagem equivocada, passando a mensagem de que as vítimas podem não ser tão vítimas assim. E é exatamente essa ideia perigosa que impede que muitas procurem auxílio para sair de relacionamentos abusivos ou denunciar seus agressores.
E para quem acha que o que está sendo passado nas teledramaturgias não influencia no pensamento dos telespectadores, sinto informar, mas estão enganados. A pesquisadora Maria Aparecida Baccega defende em seu artigo “Reflexões sobre telenovela” que tudo que ocorre no nível ficcional passa a sugerir soluções possíveis no nível do real, pois dramaturgos e espectadores estão todos imersos na mesma história cultural e é esse diálogo produção-recepção que garante o êxito da telenovela. Já Maria Immacolata Vassallo de Lopes, no periódico “Telenovela e direitos humanos: a narrativa de ficção como recurso comunicativo”, afirma que a força e a repercussão da novela mobilizam cotidianamente uma verdadeira rede de comunicação, na qual acontece a circulação dos seus sentidos e gera a chamada semiose social.
Isso tudo não é para dizer que não haja mulheres que mintam sobre agressões. Há mulheres que mentem? Sim. Mas são casos isolados: há muito mais homens que agridem de verdade. Os dados estão aí para quem quiser ver. Por décadas de teledramaturgia, nós vimos mulheres sendo ardilosas, maquiavélicas, mentirosas e sem escrúpulos, no entanto, precisamos desconstruir este conceito. É com medo de serem chamadas de mentirosas e malucas que uma infinidade de mulheres sofre diariamente em silêncio.
Ao abordar essa temática de maneira tão leviana em duas de suas principais tramas, a Globo endossa essas vozes que sempre desconfiam da veracidade dos relatos e banaliza as dores dessas vítimas e sobreviventes. Com tudo isso, será que a escolha de veicular histórias como estas em um programa tão popular quanto as novelas da Globo é uma boa ideia? Eu acho que não.