Na contramão de muitas peças recentes que priorizam o social em sua temática, o ator, figurinista e cenógrafo Paulo Vinícius traz um solo em que pulsam questões amorosas pessoais. Ouve-me com teu corpo inteiro, um título inspirado em frase de Clarice Lispector. São questões ficcionalizadas, é claro, mas hoje está difícil resistir à tentação de enxergar o autor no narrador e vice-versa, dada a profusão de fontes confessionais na dramaturgia contemporânea.
É algo que ultrapassa o âmbito do teatro. Só para ficar num exemplo único do cinema, em Chronically Metropolitan (2016), o protagonista é um escritor que se auto-exila por mais de um ano depois que um conto seu, publicado pela New Yorker, o coloca em guerra com namorada, amigos e família. O motivo: a tênue capa de ficcionalização que reveste os personagens imaginados por ele, todos muito semelhantes ao seu entorno social.
É incrível como um século e pouco de teatro modificou a concepção das questões materiais e espaciais sobre o palco.
Vencida a tentação de imaginar quem seria o amor passado de Paulo Vinícius em Ouve-me com teu corpo inteiro, se ele está ou não na plateia e que ziriguidum isso poderia causar, o espectador pasma diante do cenário. É incrível como um século e pouco de teatro modificou a concepção das questões materiais e espaciais sobre o palco. Se para naturalistas de fins do século 19, uma cadeira era uma cadeira e uma paisagem era composta de um painel pintado com árvores no fundo, hoje o cenário participa da própria concepção da obra de forma entremeada com a dramaturgia.
Em Ouve-me com teu corpo inteiro, cujo cenário é assinado por seu criador solista num momento genial, essa concepção usa a divisão da plateia em duas metades face a face. Na faixa que se forma no meio delas, o ator está protegido por persianas parcialmente transparentes, com faixas pretas e outras em que se entrevê sua figura. À medida que começa seu texto e movimentação, ele abre ou fecha um pouco dessas cortinas, revelando ou escondendo formas de maneira muito alegórica em relação ao que vai dizendo.
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O que ele diz são alguns relances do passado, palavras que, percebe-se e confirma-se na leitura do programa, custam e custaram muito a sair.
Assim como o cenário compõe a dramaturgia, o mesmo ocorre com a música. Numa das pontas do corredor destinado ao protagonista está Junior Pereira, com seus instrumentos e vocal. Suas interferências instrumentais ou líricas pontuam a narrativa, cantando junto com o solista, que traz criações de Itamar Assumpção, Jorge Mautner e Cyndi Lauper para dentro do universo da peça.
Na outra ponta, o iluminador Wagner Corrêa fecha esse cinturão que parece proteger o solista, amparando sua atuação com outras facetas de arte ao vivo. Faz pensar que, se é de uma dor do passado que se fala ali, pelo menos surgiram outras pessoas no caminho com quem contar e estar junto.
A direção compartilhada por Olga Nenevê, Marcio Mattana e Suely Araújo confirma essa vocação múltipla do espetáculo e revela outra coragem. Deixar-se escrutinar e guiar por mãos e vozes de amigos.
SERVIÇO | ‘Ouve-me com teu corpo inteiro’
Onde: Teatro Novelas Curitibanas | Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1.222 – São Francisco;
Quando: Até 25 de junho de 2017, de quinta a domingo, às 20h; sessões extras aos sábados, às 18h; Quanto: Grátis.
Ficha técnica
Diretores provocadores: Olga Nenevê, Márcio Mattana e Sueli Araújo;
Intérprete Criador: Paulo Vinícius;
Músico atuante e arranjador: Junior Pereira;
Desenho de luz: Wagner Corrêa;
Figurinista: Eduardo Giacomini;
Cenógrafo: Paulo Vinícius;
Fotografias: Elenize Dezgeniski;
Vídeos e projeções: Alan Raffo;
Designer Gráfico: Adriana Alegria;
Operação de vídeos: Victor Dias;
Assessoria de imprensa: Fernando de Proença;
Realização e Produção: Figurino e Cena Produções Artísticas.