Durante quatro horas do dia 7 de outubro de 2014, de cigarro em punho, o documentarista Eduardo Coutinho trocou de lugar. Com uma brilhante carreira construída por trás das câmeras, neste dia Coutinho postou-se às lentes do cineasta Carlos Nader para dissertar sobre a natureza de suas obras – entre as quais se incluem alguns dos mais relevantes documentários brasileiros, como Edifício Master (2002), Santo Forte (1999) e Cabra marcado para morrer (1984). Registraria neste diaum impressionante esforço de autorreflexão sobre seus filmes – Coutinho morreria tragicamente meses depois.
Ainda que o documentário Eduardo Coutinho, 7 de outubro (2015) seja em si bastante simples, transborda em cena a sagacidade do entrevistado, que impressiona pelo nível de autoconsciência que tinha sobre o próprio trabalho.
Seus filmes foram todos marcados pela ênfase na situação do encontro, no registro da verdade do indivíduo que fala, pela espécie de mágica que irrompe apenas no momento de confluência entre Eduardo Coutinho e seu entrevistado. Citando Walter Benjamin, Coutinho explicita seu interesse pela autofabulação, pois a história contada sobre o passado é sempre mil vezes melhor que o passado em si.
O filme adquire força ao dar lugar à análise de Coutinho sobre o funcionamento da sua obra, e comove ao ilustrar com cenas sua rara capacidade de escuta.
A simplicidade narrativa de seu cinema (cuja estética chegou a ser definida como “franciscana”) é alvo de sua reflexão: para Coutinho, muitos documentaristas e jornalistas gastam recursos excessivos tornando a cena mais bonita, higienizada, quando tudo que realmente interessa vai além da captura e da qualidade da cena.
Assim justifica a opção por, muitas vezes, usar apenas uma câmera, ou na pouca atenção dada à ambientação das personagens. Uma crítica velada à excessiva estetização do mundo tanto pelo documentário quanto pelo telejornalismo, muitas vezes afastados do mais essencial, que se revela justamente no que é passageiro.
Não por acaso, Coutinho anuncia seu terror à palavra profundidade: a ele interessa o efêmero, o raso, o fluido. Da superfície – como na “fala” que surge espontaneamente do corpo, do gestual – emergiriam as grandes verdades. “Me interessa o lixo, tenho horror à perfeição”, provoca.
É importante observar que, como documentário, Eduardo Coutinho, 7 de outubro tem suas limitações. Há um didatismo algo irritante, talvez irônico, na opção de Carlos Nader de ilustrar as técnicas abordadas por Coutinho.
Por exemplo, quando o entrevistado critica o uso de imagens de “plano de corte” como estratégia para dar a sensação de que não houve um corte na cena, o filme emprega exatamente este recurso, o que também acontece quando Coutinho desdenha do uso de mais de uma câmera para registrar vários ângulos da personagem.
Também causa certo desconforto a intenção de mimetizar a atenção aos bastidores de gravação, uma das marcas da filmografia de Coutinho, em quem Nader assumidamente se inspira. No entanto, o filme adquire força ao dar lugar à análise de Coutinho sobre o funcionamento da sua obra, e comove ao ilustrar com cenas esta sua rara capacidade de escuta.
Não há como ficar impassível à ciência de Eduardo Coutinho de que aquele seria o último encontro com dona Mariquinha (em O fim e o princípio, 2005); aos 23 segundos nos quais o personagem de Peões (2004) emerge do sofrimento rumo à melhor reação possível; à emoção inesperada da senhora que chora ao lembrar da história de Procurando Nemo, em Jogo de Cena (2007); ou à espontaneidade da mulher que afirma que valeu a pena viver com o homem que a infernizou, em As Canções (2011).
Temos aqui, portanto, um documentário mediano mas que se torna indispensável justamente pelo registro da grandeza de um narrador extraordinário, cuja vida adquiriu sentido por inspirar muitos outros para que contassem suas próprias histórias.
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