Publicado em 1927, Ao Farol exibe a história da vitoriana família Ramsay apresentada em três etapas. No momento inaugural, “A Janela”, os personagens localizam-se na residência de veraneio dos Ramsay, onde estão hospedados os integrantes da família, colegas visitantes e os criados da casa, no período anterior à Primeira Guerra Mundial. Nessa fase inicial a trama movimenta-se em torno do hipotético passeio ao farol próximo à habitação.
A tendência à impossibilidade de concretização da viagem gera os conflitos desenrolados até o momento seguinte, “O Tempo Passa”. Já durante a guerra e com a crueza característica da vida de então, o segundo capítulo é elo de ligação do romance, unindo os dois extremos, com rapidez e objetividade equivalentes aos combates travados durante o conflito mundial, de forma a simbolizar a fugacidade inesperada com que os fatos acontecem nesse ínterim.
O terceiro ponto, “O Farol”, ilustra a ligação entre memória afetiva, expectativa e realidade do pós-guerra, através do reencontro de indivíduos (brutal e involuntariamente amadurecidos pela hostilidade da época) no local de início, também envelhecido.
Um item de igual e fundamental importância em todo o livro e que lhe atribui unidade é o silêncio. Arquitetada com pouca ação e demasiado pensamento, a narrativa distingue-se do romance de outrora ao questionar a força do movimento em oposição à vigente supremacia do silêncio, sendo depositada nele a fidelidade ao indivíduo, a vida humana por excelência. Em Ao Farol, o pensamento atua como motor e combustível, deveras mais eficiente que o fazer em si.
“Não se podia dizer o que se pretendia dizer”. Assim insere-se na narrativa a insuficiência do pronunciável, trazendo à tona a face não-intencional, mas imposta, do silêncio da nova era. Ainda na primeira seção do livro, há a percepção de que a totalidade da existência humana não é mais traduzível em diálogos, em relações interpessoais, ou no relato de trajetórias heroicas.
Pelo silêncio, verifica-se que o embate eu-mundo perde o lugar de destaque para o enfrentamento do eu consigo mesmo, disputa efetivada pelo calar e auto refletir. Gradualmente, torna-se maior e mais assustadora a consciência da incapacidade de penetrar e interpretar a mudez de outrem. Essa sensação provoca dor, porquanto também não é possível partilhar o próprio silêncio, nem mesmo com aqueles que são amados. O silêncio machuca na medida em que grita a solidão, verdade do homem moderno e sua condição de ser.
Na segunda seção do livro, o silêncio é potencializado. A casa de veraneio está agora inabitada e em ruínas graças à silenciosa deterioração pelo tempo. O narrador vale-se de imagens para descrever as consequências da guerra. A quietude sepulcral das catedrais representa as mortes no combate, bem como o cerrar das cortinas pela bondade divina encena a inumanidade do período.
A crueldade e a falta de sentido que assaltam os cidadãos durante a guerra são reforçadas na casa de veraneio, onde até mesmo o cantar da criada, que há 20 anos fora divertido no palco, torna-se nulo, inútil representante da niilista mecanicidade da existência, mera tentativa de romper com a insistente taciturnidade doméstica que persiste em mantê-la procurando esperançosamente por qualquer “greta na escuridão”, tinido no silêncio.
Em Ao Farol, o pensamento atua como motor e combustível, deveras mais eficiente que o fazer em si.
Na terceira parte da obra, Woolf joga ao leitor de maneira súbita, chocante e formalmente inovadora certos acontecimentos fundamentais do destino da família protagonista, demonstrando que por mais que os grandes eventos – como a guerra – sejam formados por indivíduos particulares, é mesquinho narrar trajetórias isoladas enquanto conflitos de grande escala se encaminham; apontando a pequenez desses ocorridos particulares em comparação aos grandes combates, sua insignificância para o curso da humanidade como um todo. “O Farol” narra o regresso nostálgico dos sobreviventes à casa de veraneio – já destituída de humanidade como o mundo pós-guerra – e suas reações ainda mais silenciosas e reflexivas. Poucas são as palavras proferidas, e mesmo estas vigoram no silêncio.
As ponderações advindas do substancial individualismo da personagem Lily Briscoe, claramente inspirada na própria Virginia Woolf, iniciam e compõem a terceira parte do livro. Ao enxergar a impotência das palavras enquanto expressão autêntica da interioridade, a Srta. Briscoe, pintora de quadros, prefere o silêncio, pois “ela tinha vontade de dizer não uma coisa, mas tudo. Palavras soltas que interrompiam o pensamento e o desmembravam não diziam nada”. A artista é a personagem que mais questiona a insuficiência do verbo e a que mais busca meios de manifestar através dele o vazio e as emoções do corpo.
Combatendo o machismo materializado na casa especialmente pelo personagem Tansley, é através da consumação da pintura de um de seus quadros que Lily prova, silenciosamente, estar apta a executar qualquer tarefa, independentemente dos ditames culturais defendidos pelo patriarcado. Simultaneamente, com a ousada construção de Ao Farol, Virginia reafirma sua habilidade como ficcionista pela elaboração de um romance inovador, valendo-se especialmente do silêncio como elemento narrativo.
O silêncio é tão importante para a obra por todas as questões que só são formuladas e refletidas por ele. Os papeis sociais, a fama, as divisões de gêneros, os relacionamentos amorosos, a amizade, a beleza, a individualidade: todos esses conceitos inquestionavelmente convencionados pela estável tradição cultural vigente são debatidos silenciosa e interiormente durante o romance. O significativo, a partir de então, reside no silêncio assustador do qual ser racional algum é capaz de fugir, na interioridade. Personagem ou leitor, ficcional ou real, já não é mais possível ignorar o imbatível e fundamental “solilóquio urdido em solidão”.
AO FAROL | Virginia Woolf
Editora: Autêntica;
Tradução: Tomaz Tadeu;
Tamanho: 234 págs.;
Lançamento: Setembro, 2013.