Poucos artistas brasileiros tem uma trajetória tão “brasileira” quanto Agenor de Oliveira, popularmente conhecido como Cartola. Sua vida transpira brasilidade, e[highlight color=”yellow”] a melancolia e malandragem que cercam seus sambas não poderiam combinar melhor com algo que não sua própria jornada.[/highlight] O saudosismo de suas letras dialogam com as desaventuraras que o compositor carioca colecionou durante toda sua vida. Da infância pobre no morro da Mangueira, na capital carioca, aos tempos que foi obrigado a trabalhar como lavador de carros nas rua do Rio para garantir o sustento. Cartola é o representante fiel da brasilidade, com todos os percalços e malandrices que tal alcunha impõe.
Na música, foi o maior representante do “samba-canção”, dissidência do samba propriamente dito, que traz um ritmo mais cadenciado e maior apreço pela melodia nos acordes de violão. Apesar de também fazer sucesso com os bem-humorados sambas enredos para a Estação Primeira de Mangueira, escola que ajudou a fundar, Cartola sabia usar como ninguém a melancolia lírica mais evidente dos sambas-canções.
Cartola sabia usar como ninguém a melancolia lírica mais evidente dos sambas-canções.
Nascido em 1908, com menos de 18 anos Cartola se revezava entre os trabalhos braçais e a vida boêmia de compositor. Nas décadas de 1930 e 1940, o poeta do morro já era bastante conhecido na então capital federal por ter suas composições gravadas por grandes nomes da época como Araci de Almeida, Silvio Caldas, Carmem Miranda e Chico Alves. Mas, para Cartola, o prestígio dentro da classe artística e as participações em programas de rádio não eram um sonho de consumo. Simples e apegado às raízes, preferia voltar para os morros e lá curtir a vida. A essa altura, rodas de samba, bebidas e prostitutas abasteciam incessantemente sua vida.
Vivendo altos e baixos, sua vida se aprumava e voltava à estaca zero tal qual o moinho de sua mais célebre canção. O vício no álcool e a saúde precária, resultados de anos de vida boêmia, cobraram seu preço. Sofreu com meningite, doenças venéreas e o isolamento da família, já bastante desestruturada com a morte de sua mãe quando ainda era criança. Nos anos 50, o icônico encontro com o jornalista Sérgio Porto, enquanto Cartola lavava carros em Copacabana, o fez voltar se não necessariamente para os louros da fama, ao menos para o não anonimato.
Fundou o “Zicartola” com sua companheira, Dona Zica, e, apesar da evidente inabilidade para tocar um negócio – o que fez com que o estabelecimento fechasse em menos de dois anos -, entrou para o imaginário da boêmia carioca com seu bar, onde animava o público desfilando seus clássicos no violão.
As gravações que conhecemos hoje de Cartola estão presentes em quatro álbuns lançados nos anos 70, quando o já veterano sambista foi convidado a registrar em estúdio seu material pela primeira vez. E não há palavra que melhor defina estes trabalhos do que “históricos”. Cartola, de 1974, e Cartola II, de 76, são obras máximas da música brasileira. Canções como “O Mundo é um Moinho”, “As Rosas Não Falam”, “Alvorada”, “Tive Sim” e “O Sol Nascerá” são de um impacto e uma beleza estética sem igual. As letras precisas atingem de forma profunda o ouvinte.
A cada verso simplório e ao mesmo tempo tocante, [highlight color=”yellow”]a voz suave do mestre Cartola se encaixa perfeitamente com a temática melancólica de seus sambas-canções.[/highlight] Cartola viveu o que cantou. Cartola é complexidade sentimental expressada através da simplicidade estética. Nada celebra a vida nos morros melhor do que a icônica “Alvorada”. Poucas coisas declamam mais amor do que “As Rosas Não Falam”. A reflexão presente em “Preciso me Encontrar” traz uma carga de meditação popular espectral.
O sol que nasce depois da tempestade e o sorriso que tenta dar alegria ao rosto que ainda derrama a lágrima pelo amor que foi embora. Os desencontros que o levam ao mundo dos moinhos e o perfume que as rosas roubaram de alguém especial. Tudo está ali contemplado nesses trabalhos que se tornaram marcos da música brasileira.
https://www.youtube.com/watch?v=dvpk1wL_zC8
Enquanto os dois primeiros álbuns desfilam os principais clássicos de Cartola, no terceiro lançamento, Verde Que Te Quero Rosa (1977), ele aproveita para fazer as honras à sua escola de samba do coração na faixa-título e ainda homenagear de maneira autêntica sua grande paixão, Dona Zica, com quem se casara nos anos 60, com a sentimental “Nós Dois”, que encerra o álbum.
O derradeiro trabalho do cantor e compositor em vida foi Cartola 70 anos, lançado em 1979, um ano antes de sua morte. Nele, o poeta da Mangueira e torcedor do Fluminense rememora uma composição com seu grande parceiro de trajetória no samba, Carlos Cachaça, na bela “Silêncio de um Cipreste”, enquanto que em “Ciência e Arte”, que abre o disco, Cartola canta seu amor pelo Brasil e seu povo. “Quero nesse pobre enredo, reviver glorificando os homens teus/ Levá-los ao panteão dos grandes imortais/ Pois merecem muito mais”, diz a letra.
Sambando, amando e se desencontrando, a música de Cartola é um patrimônio da cultura nacional e seu nome se mantém vivo como um dos mestres da música brasileira. Poética e sentimental, sua obra ajuda a compreender a brasilidade e serve de reflexão para desvendarmos a deslumbrante, e por vezes triste, história de mais um brasileiro do morro e da periferia, como foi Agenor de Oliveira.