Graças a escritores e artistas engajados em elevar o meio a novos patamares, as histórias em quadrinhos há muito transcenderam o estigma de narrativas infantis, irrelevantes ou repetitivas. Neil Gaiman, com Sandman, demonstrou ser possível utilizar as graphic novels para narrar histórias complexas de uma forma irreproduzível em outras mídias; Frank Miller, mesmo dentro da indústria dos super-heróis, criou enredos filosóficos, com dilemas morais complexos, imitados até hoje; e Alan Moore desafiou todas as convenções e limitações das HQs para apresentar obras icônicas, cujo status de clássicos do meio – e da própria literatura – é indiscutível.
Tão criativo quanto esses grandes nomes, David Mazzucchelli fez sua carreira como ilustrador, como é de praxe na indústria, nos selos Marvel e DC, trabalhando nas séries icônicas de Frank Miller, Batman: Ano 1 e Demolidor: O homem sem medo. Mais tarde, deixou de atuar apenas na ilustração e passou a publicar antologias com histórias de sua autoria. Contudo, foi apenas em 2009 que o quadrinista demonstrou plenamente do que é capaz, ao publicar o romance gráfico Asterios Polyp (publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2011).
Vencedora do Eisner Award para melhor novo livro, Asterios Polyp é simplesmente uma das grandes HQs do nosso tempo. Tratando com sutileza e sensibilidade de temas como filosofia, arte, estética, amor e morte, a obra é uma inesquecível viagem ao núcleo da essência humana – e uma perspicaz análise das nossas relações com o Outro.
Asterios Polyp é um labirinto de miragens, uma jornada surreal por um mundo de espelhos, metáforas refletidas e toques sutis de surrealismo.
Jogo de espelhos
Asterios Polyp é também o nome do protagonista, um soturno e ácido arquiteto e grande galanteador com doses de misoginia. Aos cinquenta anos de idade, Asterios é um profissional puramente teórico, cujos projetos, embora bastante premiados, jamais foram construídos de fato. Vive no universo das ideias abstratas, protegido da realidade crua da experiência humana detrás da muralha de sua própria arrogância. Subitamente, após um relâmpago causar um incêndio que devasta seu apartamento, Asterios se vê sem moradia e sem rumo algum.
É aí que tem início o enredo, narrado por seu irmão gêmeo natimorto, Ignazio, que estabelece desde a primeira página o jogo de espelhos que Mazzucchelli desenvolverá ao longo de toda a trama. Após perder seu lar, o protagonista deixa Nova Iorque e passa a morar no interior dos EUA em meio aos peculiares habitantes da cidade de Apogee, onde aceita trabalhar como mecânico para sobreviver. Ao longo de sua jornada, Asterios relembra sua infância e seu casamento falido com a artista Hana – e o relacionamento entre as duas personagens (complexo, doloroso e absolutamente real) é o ponto mais forte da obra, um dos mais eficazes retratos de uma relação adulta de toda a ficção contemporânea.
Todos esses dilemas e conflitos são impulsionados e elevados pela imensa versatilidade artística de Mazzucchelli, cuja criatividade gráfica se mostra incomparável ao longo de todas as 344 páginas de Asterios Polyp. Utilizando diferentes paletas de cores para retratar os diversos tempos e ambientes da narrativa e variando entre múltiplas técnicas artísticas, o autor dá à obra um aspecto abstrato e onírico, tão intangível como o universo teórico que Asterios habita. Em suma, Asterios Polyp é um labirinto de miragens, uma jornada surreal por um mundo de espelhos, metáforas refletidas e toques sutis de surrealismo – e uma das melhores HQs de todos os tempos.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]ASTERIOS POLYP | David Mazzucchelli
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Daniel Pellizzari;
Tamanho: 344;
Lançamento: Outubro, 2011.[/box]