Conheci Milena em um dia quente em Tirana. A capital albanesa fervia com a visita do presidente austríaco Heinz Fischer e bandeiras e carros oficiais estavam por todos os lados, bem como a polícia e a imprensa. Ela havia dito que iria nos mostrar a cidade. Magra, com longos cabelos negros, um All-Star vermelho e uma camisa branca da Converse, ela era a encarnação da Albânia pós-Hoxha. Com seus 20e anos, se mudou da tediosa cidade de Lushnja para estudar Economia em Tirana. Vinha de uma família muçulmana, mas não ligava para religião. Ligava para o rock n’ roll e gostava de cantar as melodias de fundo arábico e armênio da banda americana System of a Down. Dominava bem o inglês, o francês, o italiano e o espanhol, e entendia português perfeitamente porque aprendera vendo nossas novelas. Falava o albanês de Tirana, que era bem diferente na pronúncia do albanês de Kosovo, que foi o que eu aprendi e que, fiquei sabendo depois, era o albanês mais antigo que existia. Não conseguia entender o que ela dizia, era um albanês com sotaque americano, com erres retroflexos que enrolavam a palavra a todo instante.
Eu e Pat, minha companheira de viagem, passávamos os dias explorando Tirana e seus arredores, com suas florestas e seus castelos nas montanhas, e à noite me encontrava com Milena. Em uma dessas noites, jantamos uma bela caçarola de tavë kosi, um prato camponês que hoje é o meu favorito da culinária albanesa: pedaços de cordeiro imersos em arroz ao molho de iogurte, gratinados no forno. Ela falava com desenvoltura sobre a cultura albanesa e comentava seus gostos literários. Odiava o conterrâneo Ismail Kadaré, autor de Abril Despedaçado, considerava-o muito em cima do muro durante a ditadura para quem, depois da queda de Enver Hoxha, atacou o regime com tanta veemência. Em compensação, gostava de Os Demônios, o longo romance político de Dostoiévski, nada adequado para uma pessoa de 20 anos como ela. Estava em dúvidas quanto a faculdade de economia, era a alternativa mais viável para escapar da faculdade de medicina, que abominava. Era o desejo do pai, mas ela se julgava muito fraca emocionalmente para ser médica. Quis saber sobre seu pai e ela respondeu com a maior naturalidade que ele era chefe do serviço secreto albanês. Perguntei não sem uma pequena tensão na voz se ele estava nos vigiando naquele momento. Ela piscou um olho e disse: “Não se preocupe, pais controladores têm filhas que sabem se esconder quando precisam”.
“Odiava o conterrâneo Ismail Kadaré, autor de Abril Despedaçado, considerava-o muito em cima do muro durante a ditadura para quem, depois da queda de Enver Hoxha, atacou o regime com tanta veemência.”
Depois do jantar, fomos até a pirâmide. O monumento em homenagem ao ditador albanês era pichado da base até o topo, e seus vidros quase todos quebrados. Havia virado uma casa de shows em alguma época, mas já havia encontrado o fim de seus dias de glória e permanecia no centro da cidade, uma aberração arquitetônica que servia, no máximo, de ponto de encontro. Escalamos a pirâmide pelo lado de fora, um pouco bêbados pelas taças de vinho, e contemplamos a cidade e a noite estrelada de seu topo. Lá em cima, usamos nossos celulares para iluminá-la e para tocar a vallja e tropojës, uma música típica do norte da Albânia que tem das coreografias mais bonitas. E então ela dançou, graciosamente saltitando e agitando os braços sobre o antigo mausoléu do ditador morto, enquanto lá embaixo repórteres cobriam alguma greve de professores. Não tiramos nenhuma foto que tenha ficado boa, mas gravei este momento e o resto da noite para sempre na minha memória.
Ainda passamos mais algumas noites juntos. Tomamos um porre, encontramos o melhor tres leches que uma doceria albanesa poderia fazer, entramos de penetra em uma festa de formatura e lutei sumô com seus amigos nas ruas silenciosas do bairro de Blloku durante a madrugada. Mas, depois disso, nos separamos e nunca mais a vi. Seguindo nossa viagem, eu e Pat eventualmente chegamos em Montenegro e na Croácia, onde os primeiros brasileiros começaram a aparecer. Não queríamos nos misturar e inventamos um país só nosso, para responder quando a fatídica pergunta de albergue viesse. Para todos os efeitos, não somos brasileiros. Somos de uma pequena ilha caribenha chamada Santa Milena.