Muito já deve ter sido escrito, e, principalmente, falado, sobre o fato de Elza Soares ser filha de uma lavadeira e de um operário, ter sido criada na favela de Água Santa, subúrbio de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, casada aos 12 anos, viúva aos 18, ter enfrentado a resistência do marido e do pai para cantar no rádio e, sobretudo, ficar “famosa” por ter sido esposa de um ídolo mundial do futebol (Mané Garrincha).
Talvez, seja pouco conhecido que, em 1953, Elza participou do programa Calouros em Desfile, apresentado por Ary Barroso, e que teria sido alvo de uma chacota do apresentador, por conta do penteado e das roupas que usava: “De que planeta você veio!?”, perguntou Barroso. “Do planeta fome!”, respondeu a ainda menina Elza. A cantora levaria o prêmio interpretando o samba “Lama” de Paulo Marques e Aylce Chaves.
Poucos sabem que Elza, após ter ficado viúva, foi trabalhar numa fábrica de sabão e num hospital psiquiátrico para ajudar no orçamento da família, tornou-se crooner por indicação do irmão, na Orquestra Garam de Bailes, na qual o mesmo fora violonista e ainda teve seu momento como vedete – substituta – na peça Jou-jou Fru-fru, contracenando com Grande Otelo.
Nos mais de 60 anos de carreira, Elza registrou vários compositores de samba, de várias épocas, sempre com interpretações singulares. Lupicínio Rodrigues, Chico Buarque e Nelson Cavaquinho são exemplos, além de sambas-enredo e de quadra, como no álbum Elza Carnaval & Samba (1969). Os sambas, aliás, são predominantes na primeira fase da carreira (anos 1960 e 1970).
O estilo do canto de Elza foi forjado ao longo do tempo com a influência de Dalva de Oliveira, Ângela Maria e de cantores norte-americanos, pelo scat-singing – técnica vocal do jazz pela qual se emprega sílabas sem sentido textual, de forma aleatória, combinadas com sons. Para ter alguma ideia, Louis Armstrong foi um expoente do recurso. Isto permitiu que Elza ultrapassasse o estilo do samba e fizesse uso de fraseados jazzísticos. Ela conta que a “rouquidão” teria origem na infância, quando carregava latas d’água. No vídeo que segue, ela conta com mais detalhes e demonstra as habilidades adquiridas no labor pesado.
Além do samba “de raiz”, o repertório de Elza foi sendo construído pelo samba-rock, tango e o funk. Em seu disco Sambas e Mais Sambas, de 1970, a cantora demonstra essa diversidade de gêneros. No mesmo disco, regrava “Mas que Nada” de Jorge Benjor, “Recado” de Paulinho da Viola, “Dá-me Tuas Mãos” de Erasmo Silva e Jorge de Castro e “Tributo a Martin Luther King” de Ronaldo Bôscoli e Wilson Simonal, como exemplos nos quais se pode notar a versatilidade do vocal da cantora.
Não raro, Elza é comparada à cantora norte-americana Billie Holiday. Talvez mais por conta da biografia, porque a melancolia blues que marca as canções da norte-americana, de um ponto de vista musical, não remetem ao balanço da brasileira. Comparações talvez sejam desnecessárias, mas, enfim, sempre é bom ouvir a Billie, sob qualquer pretexto:
Mas ainda é quase desconhecida do grande público a imagem mais contundente e significativa que Elza representa.
Performática, Elza imita instrumentos de sopro com a voz e às vezes até bateria. Aliás, sempre foi dada ao experimentalismo, em alguma medida. O exemplo mais marcante talvez seja o último trabalho, A Mulher do Fim do Mundo, de 2015. O álbum fala sobre violência doméstica, transsexualidade, narco dependência, crise da água, morte e traz sonoridades do rock, rap e eletrônico, para a essência samba da cantora.
A luta pela sobrevivência é, afinal, a tônica da carreira de Elza. Não bastasse a infância e adolescência paupérrimas, com perdas afetivas e extremas dificuldades financeiras, mais tarde, foi perseguida ao assumir o romance com Garrincha – amigos do jogador a acusavam de ter sido o pivô da separação entre o ídolo e Nair Marques, a primeira esposa, e, mais tarde, quando o craque caiu em depressão e abuso de álcool, foi considerada culpada pela derrocada de Mané. “Dura na Queda” foi composta por Chico Buarque como uma homenagem à cantora, para o musical Crioula, de 2000.
Agora, em maio, sairá o novo trabalho de Elza, Deus é Mulher. O álbum anterior, A Mulher do Fim do Mundo, foi, provavelmente, o seu maior êxito profissional. As canções são realmente impressionantes pela carga de conteúdo autobiográfico, sim, mas pela energia das interpretações, a qualidade da produção e o frescor que é próprio de uma obra-prima. Impossível deixar de ouvi-lo sem perder um recorte indispensável da carreira desta que pode ser a maior cantora brasileira e uma das maiores da história da música.
Primeiro disco de inéditas nas quase sete décadas de carreira, A Mulher do Fim do Mundo recebeu o Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de Música Popular Brasileira” e foi considerado um dos dez melhores álbuns de 2016 pelo The New York Times. Assim, fica quase impossível não surgirem grandes expectativas quanto ao novo registro.
Dito isto, pode ser acrescentado: a história da mulher, negra ou não, brasileira, afinal, pode ser lida, em grande medida, na vida e obra desta pessoa admirável e incansável chamada Elza Soares.
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