A boa memória não é aquela escavada lembrança à lembrança do fundo da alma. Não. Essa, fruto do esforço, pode até ser fiel aos acontecimentos, mas não tem a beleza da espontaneidade. A boa memória não carece de ser encontrada, ela chega: nos assalta entre um gole e outro de café no frio de uma tarde acinzentada e triste. Estoura. Arrebenta. Vem sorrateira e desleal como só ela, de mansinho e disfarçada de tédio. Melancólica e violenta feito o uivo solitário da clarineta. Chega sem permissão ou aviso, enfiando o pé na porta, e se apossa de nossas cabeças. E esgota o nosso sossego. A memória, quando é das boas mesmo, traz em sua própria composição o desassossego. É porrada! É treta! É estrondo no peito.
Tudo pode trazer à tona uma memória assombro. Músicas, lugares, olhares. Aos atores, a danada é imprescindível em toda a sua grandeza e em todas as suas definições. Da faculdade de reter as ideias e conhecimentos à recordação e lembrança daquilo que vivemos. Qualquer tipo de memória serve: as de anjos, elefantes e até mesmo de galos.
Assim como o corpo do ator, sua memória é moldada e remontada na base da martelada na quentura da bigorna do ofício. Há sempre uma teoria ou método de algum teatrólogo que se utiliza da memória aliada à técnica para se chegar a um resultado no palco. A mais famosa delas talvez seja a memória emotiva de Constantin Stanislavski.
Pois bem, foi justamente na proposta de um exercício lida pelo professor de interpretação, no seu primeiro ano do curso de Artes Cênicas, que se deu a apresentação tanto do Mestre Constantin quanto de sua tal memória afetiva a aquele menino. Tantos anos já se passaram de lá pra cá e ainda hoje ele lembra das palavras do professor. O nome do cabra confessa que esqueceu, mas pode jurar que o reconheceria de longe se ouvisse aquela voz rouca repetia sempre: “ao ator, tudo é material de trabalho. Dos mais loucos amores às mais profundas e dilacerantes dores. Entreguem-se a tudo sempre. Sintam com a curiosidade do homem do teatro. Guardem suas emoções em pequenas caixas dentro do peito. Cataloguem-as se for preciso, mas não deixem que escapem. Nenhuma delas. Revisitem essas caixas periodicamente e destranquem caixa por caixa. Ao ator, é sempre tempo de se explorar física, psíquica e emocionalmente. Ao verdadeiro homem de teatro, tudo é material de trabalho”.
E assim, como disse o mestre, ele o fez. Se entregava a tudo, tudo! Enfrentava o que fosse de peito aberto e sozinho, com a obstinação de um monge e a teimosia de um burro. Tão logo se recompunha e já voltava ao penoso trabalho de manutenção das caixas de sentimentos, como as chamava, na solidão do arcabouço torácico. Não havia na terra alguém mais preparado para encarar uma platéia. Chorar ou gargalhar, enterrar a mãe ou parir gêmeos. Qualquer fosse o caso, ele sabia que haveria de bate pronto no fundo de uma das caixinhas a solução para a intenção da fala, um incentivo para a precisão do gesto. Foi durante muito tempo o maior ator do mundo, mesmo que nem todo mundo soubesse disso.
“O problema começou há uns dois anos, mas piorou mesmo nos últimos meses”, explicava ao companheiro de cena quase 25 anos mais jovem. “De lá pra cá, não consigo mais. Por mais que eu tente, por mais que eu queira e saiba o caminho, a coisa simplesmente não funciona. Acho que de tanto usar perderam o impacto.” Estava nitidamente preocupado. Tinha emagrecido a olhos vistos e, pensando bem, há muito não era visto comendo em público, se é que ainda comia. As olheiras, negras como azeitonas, eram a prova de que se dormia não o fazia por mais de duas horas a cada noite. Estava em cacos o coitado. “Nada. Por mais que eu procure, que vasculhe cada canto aqui de dentro, não encontro nada além de poeira”. E batia no peito como se fosse possível fazer a coisa funcionar no tranco. “Nada!”
Há sempre uma teoria ou método de algum teatrólogo que se utiliza da memória aliada à técnica para se chegar a um resultado no palco. A mais famosa delas talvez seja a memória emotiva de Constantin Stanislavski.
Os dias passavam sem cor, como o personagem que construía a contragosto. Tentou de todas as maneiras deixar a peça e o ofício, mas foi convencido de que não poderia abandonar a produção naquele momento. A garantia do público era seu sobrenome em letras garrafais no rodapé do cartaz, explicava-lhe o diretor. Foram tantos os pedidos que ele aceitou seu destino feito uma Geni oca em direção ao prateado zepelim. Foi vencido o empoeirado coração que carregava e escolheu o coleguismo à reputação, mas advertiu a todos que não sabia ao certo se suportaria de fato entrar em cena naquele estado. Era um profissional despedaçado, um homem de teatro pela metade. Um ator de peito vazio.
Os outros atores da montagem tentavam animá-lo: “o senhor não precisa se preocupar. Existem diversas técnicas para se chegar a uma intenção, ninguém mais mata novamente o cachorrinho da infância pra interpretar a Anne Frank”. “Como grande ator que é, tenho certeza que não terá problemas na condução do personagem, será fantástico como sempre. Isso é cisma boba do senhor e passa logo!”. Não passava, era óbvio e ainda por cima piorava. Ele fingia entender e até concordava com os colegas, mas sabia que não poderia dar trela pro que diziam. A maioria deles tinha pelo menos 30 anos a menos do que ele. O que sabiam sobre teatro para ensiná-lo?
Aliás, o que sabiam sobre a própria vida? “Nada!”. E assim ia levando: tocava o dia no ponto morto. À noite, apenas deitava aquele corpo desabitado na cama e esquecia do sono que nunca chegava. Procurava, procurava e nada. Era sempre a mesma coisa: poeira, poeira e poeira! Não tinha jeito. E assim levou com a barriga o caso até ver o grande dia raiar no horizonte. Naquela sexta-feria, abriu lentamente os olhos pálidos e insones apenas por hábito e resmungou: “é hoje…”.
Como se a distância entre a cama e a coxia fosse apenas piscar de olhos, deu por si já no teatro, quando ouviu o primeiro sinal. Já estava maquiado, de figurino posto e aquecido, mas não se lembrava nem de ter levantado da cama. Confundira o despertador com o sinal do teatro ou ainda dormia e só tinha acordado no sonho? Não sabia. Fosse como fosse, era melhor assumir a pecha e entrar em cena.
Ao fundo, três sereias cantavam enquanto tinham suas cabeças arrancadas por enfermeiras, ou seriam três cabeleireiras arrumando as perucas das cantoras que entravam depois do primeiro intervalo abrindo o segundo ato? Sonho e realidade se misturavam em suas pupilas esfaceladas pelo cansaço. O segundo sinal tocou e apenas cinco minutos o separavam de sua primeira entrada. Sim, ele abria a peça. Entraria em cena sozinho, encararia aquele público sedento por seus sentimentos mais íntimos como sempre o fizera, no entanto, pela primeira vez estaria desarmado.
Tinha o peito e o espírito vazios. “Três minutos!”, gritou o contra-regra, enquanto batia levemente em suas costas. “Merda!”, disse o companheiro de cena, enquanto apagava o último cigarro. Ele simplesmente encarava as pessoas. Branco feito cera, com a face embatumada por uma mistura imperceptível de suor e pancake, saiu caminhando na escuridão. O caminho do camarim para o palco era curto. Descia-se uma pequena escada caracol. Ao todo, eram 22 degraus que ele tinha o hábito de contar de sete em sete. Dessa vez passara por ela tão rápido que nem percebeu os degraus, talvez nem tenha percebido a própria escada. Quando se deu conta já estava em frente a parede de tijolos pretos que fica na mesma direção do palco.
Entre ele e a boca de cena havia pouco mais de seis metros e estavam separados apenas por uma grossa cortina de veludo que roçava delicadamente em seu nariz. Espirrou. Terceiro sinal. As luzes da plateia foram apagadas. Dessa vez, não sugeriu ao diretor, como sempre o fazia, que apagasse as luzes da plateia logo que tocasse o primeiro sinal. Simplesmente se dirigiu à coxia e ali ficou parado esperando o começo de sua tragédia pessoal.
As luzes se acenderam e adentraram a coxia. À sua frente, havia um banco de madeira pequenino. A música de abertura começava seus primeiros acordes quando ele se aproximou do banco e, agachado, passou a mão sobre a densa camada de poeira que cobria o assento revelando um nome talhado cuidadosamente na madeira: Critovam Schinalbert. E então, depois de tanto tempo seco de sentimentos, sentiu os olhos se encherem d’água e algo começar a crescer no seu peito. Era ele! Sabia que aquele era o nome daquele senhor de óculos de aro rajados com armação de osso que usava uma bolsa pendurada no pescoço. Que quando ele se sentava descansava cuidadosamente a bolsa sobre a enorme barriga. Era o banquinho do velho. Lembrou daquele vozeirão de trovão e como que por milagre sentiu que havia novamente vida em seu peito. E que feito fosse uma vassoura emprestada pela lembrança a voz do mestre mandava pra longe toda aquela poeira que fizera de suas caixas do sentimento um cemitério de si mesmo.
E mergulhou no infinito daquele foco âmbar como se fizesse teatro pela primeira vez na vida.