Se tem uma estrada que conheço bem nessa vida é a RJ-155, no Rio de Janeiro, que liga Volta Redonda a Angra dos Reis e Paraty. Hoje uma via agitada e relativamente bem cuidada, na minha infância era o terror dos fins de semana, quando saía do litoral sul, onde morava, para visitar minha mãe, em Resende (depois, quando fui cursar o ensino médio em Resende e morar com a minha mãe, fazia o trajeto no sentido contrário para visitar meu pai). Esburacada, pavimentada com pedras e paralelepípedos desleixadamente colocados no caminho, sinuosa no trecho da terrível Serra D’Água, era uma viagem das mais infernais, e não foram poucas as vezes que deixei meu almoço naquela estrada escura, perigosa e deserta.
De Resende para Angra, o final da Serra D’Água era um alívio. Passava por um trecho apinhado de botecos, todos com nomes como “Bar do Zé”, “Bar do Miro” e “Bar do João”, com uma única igreja evangélica no meio (hoje parece que as igrejas venceram os pés-sujos em número por ali); logo mais adiante havia uma enorme fazenda com uma pista de pouso que diziam ser de um terrível traficante local e, um pouco antes, o trevo do Zungú, que dava acesso ao bairro de mesmo nome no município de Angra.
Aqui cabe um parênteses: Angra dos Reis e Paraty não são municípios típicos em sua geografia. As cidades possuem ‘bairros e distritos que podem ficar completamente isolados do centro, como vilarejos sem autonomia. Para chegar até Angra dos Reis vindo de Praia Brava, distrito de Angra onde nasci, é necessário percorrer perto de 50 quilômetros pela rodovia Rio-Santos. O Zungú, era, portanto, tecnicamente um bairro, mas uma vila isolada no meio da Mata Atlântica como muitas outras por ali. Pegava-se um caminho de terra que seguia até sumir de vista antes de se chegar lá. E o trajeto era dos mais ermos.”
“Cerca de 15 ou 20 quilômetros adiante, já em frente ao Condomínio Marbella, uma área residencial de luxo que servia como referência na rodovia Rio-Santos, o ônibus fez uma nova parada. E adivinha? Uma mãe desesperada de não ver o filho descendo do ônibus subiu a bordo e perguntou pro motorista cadê o moleque que deveria estar sentado na poltrona 3.”
Tudo isso para contar a seguinte estória: 15 anos atrás, estava eu com um amigo meu, o Eric, em um ônibus sacolejante, descendo pela Serra D’Água em direção a Angra dos Reis, quando o motorista parou no trevo do Zungú, abriu a porta e disse sem muita cerimônia para um moleque de uns 10 anos que estava sentado lá na frente do veículo e cuja presença até então não havia sido notada: “Desce aí, seu pai pediu pra você descer aqui no Zungú”. Era normal —e eu sou prova viva — que pais colocassem filhos pequenos nos ônibus caindo aos pedaços e combinassem com o motorista onde a criança ia descer para se encontrar com o familiar mais próximo (explico isso porque alguém que faz fila todo santo dia na frente do Bom Jesus para apanhar a prole das mãos do segurança do colégio pode ficar espantado), mas a criança pareceu meio desesperada e tentou argumentar com o motorista: “Mas eu não desço aqui não, moço”. O motorista do ônibus fez uma cara de quem não tinha acordado disposto a discutir com uma criança de 10 anos e simplesmente resolveu gritar: “É aqui sim, desce aí, pô!”, ao passo que o moleque, que aprendeu a obedecer os mais velhos desde cedo, desceu no trevo do Zungú, que estava absolutamente deserto, e ficou por ali plantado observando nosso ônibus se distanciar dele.
Cerca de 15 ou 20 quilômetros adiante, já em frente ao Condomínio Marbella, uma área residencial de luxo que servia como referência na rodovia Rio-Santos, o ônibus fez uma nova parada. E adivinha? Uma mãe desesperada de não ver o filho descendo do ônibus subiu a bordo e perguntou pro motorista cadê o moleque que deveria estar sentado na poltrona 3. O rapaz projeta aquele beiço de “só estava seguindo ordens”, encolhe os ombros e fala: “O pai dele falou pra deixar ele no Zungú… Deixei ele lá, ué”. A mãe repete o argumento do garoto de que não era ali que ele deveria descer, mas se vocês acham que o motorista iria dirigir 15 ou 20 quilômetros no sentido contrário para buscar uma criança de 10 anos que ficou plantada sozinha num trevo sinistro na boca de Sei Lá Meu Deus, repensem seus conceitos sobre o serviço sul-fluminense de transporte coletivo. Lá se foi a mãe a se virar com caronas e não sei o que mais pra tentar recuperar o menino do Zungú.
Hoje em dia o trevo do Zungú é iluminado, asfaltado e não é nem de longe assustador, a menos que a arquitetura horrorosa do Centro de Informações Turísticas que construíram no entrave afete suas sensibilidades. Muito diferente da estrada de terra com uma placa branca pintada com tinta preta e vermelha indicando o caminho. Até hoje, Eric e eu nos entreolhamos às vezes, quando alguém faz algo digno de reprimenda, e soltamos: “Vou te largar lá no Zungú, hein?”.