Dando continuidade às historinhas do Leste (a primeira você pode ler clicando aqui), agora teremos dois poemas sobre crianças. O primeiro deles, da pena de Jerzy Ficowski (1924-2006), sobre o qual já tive oportunidade de escrever aqui, narra uma história ocorrida em 1942. A tradução é de Piotr Kilanowski.
“Menina de seis anos de idade do gueto mendigando na Rua Smolna em 1942”
“ela não tinha nada
fora os olhos crescidos
neles completamente sem querer
duas estrelas de Davi
que uma lágrima talvez apagasse
então chorava
Suas palavras
não eram prata
valiam no mínimo
uma cuspidela uma cara virada
sua fala chorosa
cheia de palavras aleijadas
então calou
Seu silêncio
não era ouro
valia no máximo
5 centavos uma cenoura talvez
um silêncio muito comportado
com sotaque judeu
de fome
então morreu”
A criança anônima estava ali, na rua Smolna, antes ou depois da “solução final”? Pouco importa, ela morreu com seu silêncio eloquente, com seu sotaque judeu e de fome.
Quem ousaria dar esmola à criança da rua Smolna? A palavra é “ousar”, havia punições muito severas para quem quer que fizesse algum ato de caridade (creio que o termo adequado seja humanidade) para com os judeus, naqueles tempos.
Os poemas de Ficowski, conforme eu os leio, ecoam não apenas o silêncio daqueles que foram vítimas da cruz suástica, da SS, do ódio e, antes disso, daqueles que disseram ‘não, isso é só um jeito de falar, é só exagero’, mas também são o grito do próprio Ficowski, que não pôde fazer nada.
Os poemas de Ficowski, conforme eu os leio, ecoam não apenas o silêncio daqueles que foram vítimas da cruz suástica, da SS, do ódio e, antes disso, daqueles que disseram “não, isso é só um jeito de falar, é só exagero”, mas também são o grito do próprio Ficowski, que não pôde fazer nada. Para ajudar, é sempre bom lembrar, não basta boa-vontade, são necessários meios hábeis.
No poema de Ficowski que trago a vocês (ele consta do livro A Leitura das Cinzas, de uma beleza pungente e terrível), sinto culpa, sinto a angústia de quem viu, no aumento gradativo do sofrimento, a menina chorar, calar e, então, morrer. Com ela, morre toda a humanidade.
O ano de 1942 aparece outras vezes nos poemas de Ficowski: é o ano em que o doutor Henryk Goldszmit (ou Janusz Korczak) vai com suas crianças para Treblinka (todos morreram na câmara de gás), é o ano em que Miriam, em outro poema, é assunta aos céus. Miriam também morreu de fome e de frio.
A segunda historinha do Leste de hoje nos é contada por Władysław Broniewski (1897-1962) e se intitula “Baladas e romances”. A tradução foi impiedosamente cometida por mim. Falta rima e falta ritmo, mas sigamos.
“Baladas e romances”
“’Escuta, mocinha! Ela não escuta…
É dia claro, uma cidadezinha…’
Não há cidadezinha, não há viva alma
pelos escombros corre nua, ruiva, Ryfka
uma criança de treze anos.
Passaram alemães grandalhões em um tanque
(Fuja, fuja, Ryfka!)
‘Mamãe está sob os escombros, papai em Majdanek’
Sorriu, encolheu-se, sumiu.
E passou um conhecido, um ricaço de Lubartów
‘Tome, Ryfka, um pãozinho, pra você ficar bem…’
Pegou, mordeu, mostrou os dentes:
‘Eu vou levar pro papai e pra mamãe’.
Passou um camponês, deu uma moedinha,
passou uma velha, também deu uma coisinha,
passou um monte, um monte de gente
todos estranhavam que ruiva e nua.
E passou o supliciado Senhor Jesus,
os SS o haviam torturado,
puseram ambos nos limites da cidade
depois empunharam as carabinas.
‘Escuta, Jesus, escuta, Ryfka, Sie Juden,
pela coroa de espinhos, por esses cabelos ruivos
por vocês estarem nus, por nós sermos culpados
ambos devem morrer’.
E sobreveio Aleluia na Galileia
e ambos angelaram em seguida
depois a salva e irrompeu o silêncio…
‘Escuta, mocinha!… Ela não escuta…’”
O poema de Broniewski dialoga com outro, do também polonês Adam Mickiewicz (1798-1855), um dos maiores nomes do romantismo.
Porém, importa-me chamar atenção, aqui, para a indiferença. Ainda que Ryfka, uma menina ruiva e nua de treze anos, tenha conseguido “um pãozinho, uma moedinha, uma coisinha”, a imensa maioria das pessoas apenas estranhou que fosse ruiva e estivesse nua. Os cabelos ruivos eram associados aos judeus poloneses. A indiferença, por sua vez, é das piores coisas da espécie humana.
O indiferente não reconhece no outro alguém muito parecido, talvez não reconheça outro “alguém”. O indiferente é, antes de tudo, um covarde. E é justamente na indiferença covarde da imensa maioria (“bom, nada vai acontecer comigo, nada vai acontecer com meus amigos, talvez com aquele vizinho… mas ele, bem, ele deixa o cachorro pisotear no meu jardim…”) que prosperam os horrores. A indiferença é uma das máscaras da tirania e, muito cuidado!, pode estar na casa de qualquer um de nós.
P.S.: O poema “Ballady i romanse”, de Władysław Broniewski, foi musicado pelo grupo polonês Siostry Wrońskie. Pode-se ouvir a versão no YouTube: