Mais uma vez, navego em águas misteriosas e escrevo sobre uma série que, até semana passada, jamais tinha ouvido falar a respeito. Mais especificamente, Haibane Renmei, um anime de 13 episódios lançado em 2002. E, ao terminar de assisti-la, uma série de pensamentos me passou pela cabeça, mais ou menos um em seguida do outro:
- Meu deus, que série bela e original!
- Como é que essa série é tão pouco divulgada?!
- Bom, faz sentido: eu mal conseguiria explicar a que gênero ela pertence!
Vamos falar desses pontos aos poucos.
Haibane Renmei é baseada em uma série de quadrinhos independentes de Yoshitoshi ABe (sim, com B maiúsculo) e dirigida por Tomokazu Tokoro. Previamente, ambos trabalharam juntos respectivamente como designer de personagens e animador em Serial Experiments Lain. E para quem assistiu a Lain (conhecido como um dos animes mais enigmáticos de todos os tempos), isso já deve dizer alguma coisa.
Haibane Renmei faz uma coisa que curiosamente poucas séries fazem: convida-te a revisitá-la.
A série começa de uma forma que pode soar um tanto absurda por escrito, com uma garota caindo pelo ar e, logo em seguida, saindo de um casulo, sem qualquer memória de quem ela é, qual seu nome ou qualquer outra coisa sobre sua vida. Ela é logo acolhida por um grupo de Haibanes – criaturas semelhantes a anjos -, que vivem em um velho edifício chamado apenas de Old Home. Lá, elas – as Haibanes de Old Home são todas mulheres e crianças – lhe explicam que ela própria também é uma Haibane, e também lhe dão um novo nome, Rakka. Conforme os episódios passam, Rakka faz amizade com as outras Haibanes, e passa a explorar Glie, a cidade murada onde Old Home está localizada. Tudo muito bonitinho… Até Rakka descobrir o futuro ao qual (quase) todos os Haibanes estão destinados, e como isso se relaciona com suas origens.
Ok, talvez Haibane Renmei seja um pouco diferente de Serial Experiments Lain, focando-se em uma história mais simples e poética… Mas se engana quem pensa que por isso ela não possui uma discreta grandiosidade. A começar pela forma como Tokoro conseguiu transferir para animação os traços bastante peculiares de ABe, famoso por nunca usar régua em suas ilustrações. Temos, assim, um anime no qual não apenas os personagens, mas todo o mundo possui um estilo consideravelmente diferente do de outras animações japonesas da mesma época.
E não é apenas nos traços. Haibane Renmei consegue de alguma forma escapar de muitos dos estereótipos tipicamente associados a animes: não há robôs gigantes, lutas ou personagens gritando sem parar; há uma única cena levemente sanguinolenta no primeiro episódio, e depois nunca mais; o humor nunca é forçado nem imaturo; e o fanservice é praticamente inexistente, jamais havendo closes em peitões ou minissaias. De certa forma, Haibane Renmei lembra em muito os filmes de Hayao Miyazaki, na forma como estende as possibilidades da animação japonesa para além daquilo que é considerado padrão em animes.
De fato, Haibane Renmei é um anime tão diferente de tudo, que é difícil sequer dizer o que ele é. Classificar Haibane Renmei é quase tão difícil quanto classificar a obra de Franz Kafka, é meio que sua própria coisa. É uma série de fantasia com certo ar de conto de fadas… Mas boa parte de sua fantasia é essencialmente alegórica. É uma história de passagem à maturidade… Mas dado o que Haibanes são e seu estilo de vida, é difícil associar essa “maturidade” a uma “vida adulta”.
A série usa de fato diversos elementos do imaginário cristão, tanto visual quanto narrativamente. Mas descrevê-la como uma “série cristã” é sensacionalista praticamente ao ponto de ser mentira. Não dá sequer para dizer com certeza se é uma série triste ou alegre, há um equilíbrio perfeito de momentos para ambos os sentimentos, e o final… Bem, não vamos dar spoilers. Digamos apenas que é bastante emotivo.
Ou melhor, digamos apenas duas coisas sobre o final da série. A primeira é que é bastante emotivo (se feliz ou triste, vai ter que assistir pra saber). A segunda é que você pode esquecer quanto a ter as respostas prontas para muitas das principais perguntas da série. E é aí que, em minha opinião, está a maior grandeza da série: nada é entregue de bandeja. Ela pressupõe que você tenha maturidade suficiente de, após assisti-la, dar um tempo para questioná-la e interpretá-la.
E não é por preguiça ou pretensão: os personagens continuam sendo muito bem desenvolvidos, assim como o mundo deles. De certa forma, a construção do mundo e das personagens é justamente feita visando a essa ponderação, a essa busca pelos significados escondidos aqui e ali. Com isso, Haibane Renmei faz uma coisa que curiosamente poucas séries fazem: convida-te a revisitá-la. Eu próprio pretendo eventualmente assisti-la novamente, e olha que costumo ser chato para reassistir a séries, preferindo sempre seguir em frente na minha interminável lista de programas a assistir. Por isso, se cruzar com essa série na sua frente, dê uma checada nela. E se for de um jeito que você possa depois assisti-la novamente, melhor ainda.