Em meio às incertezas e angústias ocasionadas pelo atual cenário político, é normal pensarmos em como esse capítulo da história pode ser representado daqui a alguns anos nos livros didáticos. As artes podem ser uma alternativa de reprodução desses momentos, ao contribuir na reconstrução da memória para outras gerações a partir de seu viés político e social. E a música tem um papel essencial nisso.
A música, quando utilizada não mais como entretenimento, mas como instrumento social e político, anda lado a lado com as mudanças da sociedade. Então é característico que ela se utilize de problemáticas vigentes do momento para politizar, visibilizar e resistir diante das adversidades sociais. Isso é comentado por Carlos Eduardo, jornalista e professor de história. Ele mantém na ativa o projeto História por Música, curso que articula a produção de canções populares com fatos históricos.
“A música é um reflexo da sociedade que a produz. Então temos todas as questões sociais orbitando em uma espécie de espaço que alimenta a criação artística. A sociedade está sempre em movimento, não são entidades estáticas no tempo e no espaço. Elas evoluem e retrocedem. A produção artística, no geral, reflete esses movimentos da sociedade”.
Então de que forma a música está contando nossa história ao longo dos anos? Ao pesquisar e conversar com críticos, estudiosos e músicos, foi possível inferir que a partir da década de 1960 passou a ter uma maior incidência de músicas com caráter contestador. Essas músicas visavam expressar as opiniões de artistas, que representavam muitas outras vozes, que estavam descontentes com a conjuntura da época.
E não é para menos: nesta época, o Brasil estava se encaminhando para um regime ditatorial e no mundo estouravam as manifestações juvenis, ou de contracultura, que se opunham à ameaça de um endurecimento dos governos. Inclusive, é neste período que a banda Pink Floyd surge – banda que atualmente está na boca do povo após o baixista e um dos fundadores, Roger Waters, utilizar dos telões de seus shows realizados no Brasil para criticar o atual candidato à presidência Jair Bolsonaro.
Na década de 1960, a banda já contestava a posição dos EUA tanto na Revolução Cultural de Mao, na China, quanto na Guerra do Vietnã. Neste período também surgiram outros artistas com músicas combativas, como Bob Dylan (“Blowin’ in the Wind” e “Masters of War”), Jimi Hendrix (“Star Spangled Banner” em Woodstock), John Lennon (“Give Peace A Chance”) e Marvin Gaye (“Whats’s Going On”).
E havia também as músicas que retratavam problemas conjunturais, como as das campanhas coletivas ao combate à fome no continente africano com “Do They Know It’s Christmas?” e “We Are The World”. Assim como as que questionavam o racismo latente da época, retratadas nas obras da cantora norte-americana Nina Simone.
“A música, como expressão artística, brota dos sentimentos do criador. Se o artista está feliz com as circunstâncias, ele expressa isso. Se está insatisfeito, revoltado, idem”, explica Carmélio Reynaldo, professor universitário, radialista e jornalista.
Além dos períodos históricos já revisitados, Carlos Eduardo ainda elenca outros que podem ser relembrados por meio de músicas.“Nos anos 60 você tem o movimento hippie com trabalhos dos The Rolling Stones, com o ‘Street Fightin’ Men’, que retrata a repressão de policiais a uma manifestação londrina. Nos anos 70, havia um desentendimento provocado por questões religiosas e de etnias entre Irlanda do Norte e Inglaterra, integrantes do Reino Unido. A banda U2 denuncia essas questões com o ‘Sunday Bloody Sunday‘. Já na Inglaterra surgem artistas punk como The Jam, The Clash, e mais tarde o Paul Weller – que era o líder do The Jam até formar outra banda chamada The Style Council. Eles bradavam contra o governo da Margaret Thatcher, que abraçou o neoliberalismo. Tem também o Sting, que com o álbum …Nothing Like The Sun fez músicas sobre a ditadura chilena”.
A música combativa no cenário brasileiro
No Brasil, a música passa a não ser apenas o ato de fazer a música, mas o de pensar a música, em momentos de insatisfação. É o que explica o crítico de música do G1, Mauro Ferreira. “A música exerce esse papel sobretudo nos tempos conturbados do ponto de vista sociopolítico, como na ditadura de 1964 a 1985, e/ou econômico”.
É justamente no período de regime militar que a produção musical contestadora do país parece atingir seu ápice, mesmo em meio a censura legitimada pelo governo. Esta que passa a barrar as músicas com alto teor político de serem disseminadas. Músicas que abordavam a opressão ao cidadão, o abuso de poder, a violência e as más condições no contexto educacional e cultural estabelecido pelos militares.
“Apesar da censura vigente na ditadura brasileira, que atrapalhava bastante os compositores que queriam se expressar contra a falta de liberdade, existiram vários compositores que a burlaram. Por meio de metáforas, códigos e codinomes, como o Chico Buarque, que passou a ser chamado de Julinho da Adelaide”, conta Carlos Eduardo.
O professor ainda elenca outros grandes nomes que fizeram história com suas músicas. São exemplos: o disco Clube de Esquina, de Lô Borges e Milton Nascimento, que retrata o que era ser jovem nos anos 70; Milagre dos Peixes, também de Milton Nascimento. Este teve diversas músicas censuradas que foram gravadas só a melodia, como é o caso de “Os Escravos de Jó”, posteriormente chamada de “Caxangá”, na voz de Elis Regina; e o disco Sinal Fechado, de Chico Buarque, que tem a emblemática canção “Acorda, Amor”.
A música acompanha os movimentos da sociedade e os refletem, sejam eles positivos ou negativos. Desse modo, a nossa história continua sendo contada pelas artes, especialmente pela música.
Além deles há ainda inúmeros artistas com trabalhos que retratam bem o que foi esse período da história brasileira, como Geraldo Vandré (“Pra não dizer que não falei das flores”), Caetano Veloso (“É proibido proibir”), Elis Regina (“O Bêbado e o Equilibrista”) e a icônica “Cálice”, de Chico Buarque.
Mas a música brasileira com teor político não retratou apenas a ditadura, mas também contestaram diversos problemas sociais ao longo da história. “A Cidade”, dos recifenses Chico Science & Nação Zumbi, retrata as desigualdades ao destacar a exclusão social nas cidades; “Até quando?”, de Gabriel, O Pensador, contesta o conformismo da sociedade de não buscar mudanças; o disco Selvagem, do Paralamas do Sucesso, aborda desde a situação de periferias e as relações entre elas até críticas aos governos da época; e o Refavela, de Gilberto Gil, faz um inventário do Brasil dos anos 70 e põe em evidência nossos laços com a cultura africana.
Mas se tem um gênero que é responsável por “tocar na ferida”, de retratar nossa realidade de forma crua ao apresentar as mazelas da sociedade que, comumente, são invisíveis aos olhos da maioria, é o rap. E é a partir dele que somos levados a conhecer a realidade de periferias, a miséria, a violência policial e o preconceito.
“O rap surge da convulsão social, da convulsão urbana. Ele chega no Brasil no início dos anos 80 e traz consigo a perspectiva de luta pelos direitos e território. Rap, para nós, para a negritude e para periferia, é política pública, é saneamento básico, coisas que faltavam na nossa estrutura. Por meio disso, conseguimos entender o papel da polícia na comunidade, por exemplo”, comenta o rapper GOG, um dos pioneiros do gênero no Distrito Federal.
Os Racionais MC’s foi – e continua sendo – um dos maiores grupos da história do rap brasileiro. Com sua primeira coletânea, o Consciência Black, Vol. I (1988), o grupo retratou a desigualdade nas periferias e as injustiças sociais movidas pelo preconceito racial. Temas que estão presentes em músicas de outros rappers que surgiram na mesma época, como MV Bill, Marcelo D2 (inicialmente com o Planet Hemp), Gabriel, O Pensador, Facção Central e Pavilhão 9.
Com o passar dos anos, o rap – assim com outros gêneros antes muito marginalizados como o funk – passou a ocupar discussões musicais e culturais que o permitiram sair do subterrâneo do meio alternativo e tangenciar a grande mídia. Essa incorporação não é completa, até porque o rap continua com seu viés sociopolítico latente demais para os meios mais tradicionais, mas ainda assim conseguem furar essa bolha.
“Na evolução do gênero musical, chegar mais gente para ouvir, não vai coincidir necessariamente com a diminuição daquela problemática ou a inexistência dela, muito pelo contrário. O Brasil é um país racista. A tecnologia nos dias atuais nos leva para uma caminhada globalizada, para a diversidade do pensamento. Mas ela também traz a diversidade do ódio. Hoje em dia, as pessoas não têm cara, mas têm voz. O que contribui com a confusão de liberdade com libertinagem”, conta GOG.
A música acompanha os movimentos da sociedade e os refletem, sejam eles positivos ou negativos. Desse modo, a nossa história continua sendo contada pelas artes, especialmente pela música. Contudo, muitas vezes, é preciso se aventurar no subterrâneo do mundo alternativo para encontrar esse material, porque normalmente o conteúdo que alcança a grande indústria fonográfica atual não contém esse viés.
“Eu considero a produção musical de duas formas: a música que a gente vê na mídia, que é absolutamente desvinculada de questões mais profundas, uma produção totalmente conivente com o mercado e que não cabem protestos mais sérios, mas também há os artistas jovens independentes, de muita qualidade, que grava para um público potencialmente pequeno. São exemplos artistas como Garotas Suecas e Francisco El Hombre. Além de rappers como Criolo e Karol Conka, que até se sobrepuseram essa questão do subterrâneo e agora têm uma posição na mídia mais confortável. Mas que ainda mantêm um vínculo autêntico com questões que não estão no cardápio da grande mídia”, explica Carlos Eduardo.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.