A frase “com quantas mortes no peito se faz a seriedade?” é trecho da música “Senhor Cidadão”, de Tom Zé, e resume bem o que é assistir a Bandidos na TV, primeira série documental brasileira produzida pela Netflix. E não se preocupe se você nunca ouviu falar de Wallace Souza ou do programa Canal Livre. É até mais “divertido”, embora nada soe leve na série. A produção consegue muito bem emular o que foi um dos programas brasileiros mais populares de televisão, bem como um dos casos mais chocantes e violentos dos país.
Wallace Souza ganhou popularidade extrema nos anos 1990 por causa de seu programa Canal Livre, em Manaus. Sendo exibido diariamente no horário do almoço, o Canal Livre era uma espécie de Balanço Geral, da Record, só que muito mais sanguinolento. Durante sua exibição, o programa mostrava casos policiais reais, sem nenhum tipo de filtro nas cenas de assassinato, sequestro e operações de repreensão ao tráfico. O programa conquistava níveis absurdos de audiência, alçando Wallace Souza a um herói de Manaus, um justiceiro da TV que cumpria um papel que a polícia não fazia.
Amado pela população, em 1998, Wallace decidiu se candidatar a deputado estadual do Amazonas, sendo o parlamentar mais votado da história do estado. Reeleito diversas vezes, Wallace ainda comandava o programa, sempre com o discurso de que aquele era para o povo e do povo. A história muda somente em 2008, quando o ex-policial militar, e agora traficante, Moacir Jorge Pereira da Costa, conhecido como Moa, denuncia Wallace Souza e seu filho, Raphael Souza, dizendo que os dois comandavam uma quadrilha de esquadrão da morte e crime organizado no Amazonas. Para aumentar a audiência de seu programa, Wallace teria cometido pelo menos um assassinato, que teria sido gravado pela equipe de seu programa. A partir daí o documentário vai em busca de todos os envolvidos no escândalo, tentando ouvir todos os lados.
O acerto de Bandidos na TV é mudar o peso da balança quando o público menos espera.
Bandidos na TV, dirigido por Daniel Bogardo, não perde em nada para outras séries documentais da Netflix, como Making a Murderer e The Keepers, inclusive repetindo os mesmos erros que estas duas também fizeram. Em sete episódios, o documentário assume ares de filmes de terror. Com uma edição eficaz, inclusive com simulações de crimes bastante reais, Bandidos na TV acerta em cheio ao colocar o público dentro de um cenário extremamente violento, contando um pouco da história de uma Manaus tomada pelos criminosos.
A narrativa cria momentos de tensão e reviravoltas e, mesmo que essas reviravoltas possam ser facilmente encontradas no Google, a produção consegue fazer o público se surpreender com tamanho absurdo visto em cada nova descoberta. Cenas fortes e explícitas, quase como se estivéssemos em algum episódio de Canal Livre, deixam a produção desconfortável, algo essencial para entender por que Wallace era tão amado. Afinal, o ex-deputado jurava combater o terror.
Mas o acerto de Bandidos na TV é mudar o peso da balança quando o público menos espera. Quando já estamos convictos de que Wallace de fato cometeu diversos crimes para continuar sendo uma espécie de mito no estado, a série começa a mostrar o outro lado da moeda. Membros da família do ex-deputado, pessoas que trabalharam diretamente com ele no programa e testemunhas que denunciaram Wallace na época aparecem afirmando que foram torturadas pela polícia para forjar um depoimento. Cada vez mais influente na política e com apoio popular, Wallace teria ganhado o ódio das instituições ligadas ao tráfico e dos próprios traficantes. Lá pela metade da temporada todas as nossas convicções vão por água a abaixo.
Ritmo
Se a série acerta ao nos deixar impressionados com tamanha violência, também erra justamente por pesar a mão em cenas repetitivas demais. Em determinado momento, a série parece não andar. Reitera informações que já foram ditas e esclarecidas e exibe depoimentos que não acrescentam muito à narrativa. Depois de uns dois episódios, na verdade, a série acaba caindo em um padrão de repetições que incomoda, prejudica a fluidez da história e dá a impressão de que bastavam apenas um ou dois episódios para contar a história toda.
Após sete horas de pura violência, o público pode sair cansado. As últimas cenas são estarrecedoras, ao mesmo tempo em que mostram que, independentemente do lado que se escolhe, Wallace foi uma grande figura importante para aquela realidade. Ainda que o documentário perca força ao longo do tempo de exibição, Bandidos na TV é uma forte experiência para entender a complexidade do Brasil, da justiça e dos auto proclamados super-heróis.