Quebrando as expectativas depois de entregar uma temporada fraca – o RPDR AllStars 4, que começou mal e terminou frustrante – a temporada 11 de RuPaul’s Drag Race foi um deleite para todos os fãs deste que é um dos melhores reality shows da TV mundial. Trouxe tudo aquilo que esperávamos: personagens fortes e marcantes, personagens fracos e esquecíveis, conflitos profundamente humanos, performances surpreendentes nos desafios, convidados famosos fazendo intervenções espirituosas. Foi uma daquelas temporadas em que, ao fim de cada episódio, cada prévia do próximo trazia aquele desejo para que a semana passasse logo.
O mais engraçado disso é que o formato de RPDR é, essencialmente, bastante engessado. Quem é fã já conhece bem quais as provas que serão enfrentadas (como a transformação de alguém em “irmã drag”, o cultuado Snatch Game, o videoclipe feito em cima de uma música de RuPaul, a “biblioteca” em que as participantes esculacham umas às outras). Se é previsível, então a graça de uma temporada está concentrada, de fato, em um outro lugar: na escolha de um cast memorável, capaz de angariar empatia, torcida ou ódio. É mais ou menos o que acontece com o formato do Big Brother Brasil: o sucesso do programa está diretamente relacionado à capacidade de gerar engajamento na audiência.
Pois então vamos dedicar um olhar mais atento à verdadeira joia de RPDR 11, que foi o seu elenco. Tivemos uma temporada em que o protagonismo se dividiu, desde o início, entre um quarteto de drags totalmente diferentes, que representavam, individualmente, a especificidade e a potencialidade dessa arte (como quase tudo no mundo artístico, drag tem nichos, e coube a RPDR a tarefa de nos familiarizar neste vocabulário).
Silky Nutmeg Ganache trouxe à tona a lembrança de Latrice Royale e várias outras drags gordas, com humor afiado e um discurso body positive, mais ou menos gostáveis (Silky, inclusive, gerou desde o primeiro episódio uma certa rejeição entre as demais participantes, que sentiam que talvez seu espaço em tela estivesse sendo roubado por sua personalidade extravagante). Extremamente espirituosa e carismática, Silky, infelizmente, foi se revelando (ou foi editada?) como rancorosa e perdeu força no desenrolar da temporada. Brooke Lynn Hytes, a bailarina, surpreendeu logo na primeira semana com looks impecáveis e um aspecto cool que atraía a quem olhasse.
Se é previsível, então a graça de uma temporada está concentrada, de fato, em um lugar: na escolha de um cast memorável, capaz de angariar empatia, torcida ou ódio.
A terceira protagonista foi a drag que se sagrou vencedora: Yvie Oddly, uma descendente direta do “drag de horror” apresentado dentro da franquia por Sharon Needles, a campeã de RDPR 4. Trata-se de um estilo pouco explorado no programa, mas que traz vários elementos que podem gerar empatia nos fãs: é uma drag cheia de referências à cultura pop, que recompensa os nerds espalhados pela rede. Entre altos e baixos, Yvie conseguiu sobreviver nos episódios a partir de looks bem elaborados e que surpreendiam por apresentar narrativas coesas, diferente de outras competidoras. Para completar, Yvie revelou que sofre de uma condição de saúde – a Síndrome de Ehler-Danlos, que afeta os tecidos conjuntivos da pele e dos demais órgãos e faz com que o corpo produza menos colágeno – que a torna mais flexível, o que, curiosamente, trouxe algumas vantagens às suas performances.
E por fim, a quarta protagonista foi Vanessa Vanjie Matteo, a drag “resgatada” por RuPaul na temporada 10 e que se tornou um hit absoluto no programa por um lance de sorte: ao ser eliminada já no primeiro episódio de sua temporada, ela repetiu “Miss Vanjie” várias vezes e criou um bordão que foi mais lembrado do que qualquer outra fala de outra competidora naquele ano. Vanjie voltou na temporada 11 para mostrar mais do que não vimos, colhendo os frutos de uma personalidade cativante, mas que mal havia sido mostrada – mais ou menos como aconteceu com Shangela anteriormente. Nesta temporada, Vanjie ganhou uma narrativa completa, com direito ao primeiro romance drag da história de RPDR: ela se envolveu com Brooke.
As protagonistas receberam companhia de um elenco de apoio bastante digno – como Nina West, que desempenhou um papel de ativista LGBT e angariou muitos fãs pelo mundo todo, ou a belíssima asiática Plastique Tiara, ou mesmo a “zebra” A’Keria Davenport, que não prometia nada, mas cujo talento ao humor a levou para o top 4. Juntas, as 15 participantes puderam resgatar a reputação abalada pelo tom agridoce das últimas temporadas – o AllStars 4, profundamente sem graça, e que terminou brochante com duas vencedoras, num resultado que sugeria uma tentativa de acalmar os ânimos de acusações de racismo sofridas pelo programa; já na temporada 10, vencida por Aquaria, a personagem mais lembrada foi justamente Vanjie, a primeira eliminada.
Não obstante, o grande triunfo da fórmula de reality shows como RPDR está na imponderabilidade. Se todos nós sabemos já o que esperar – e mais ainda as participantes, que estudam cada temporada em busca de uma estratégia vencedora – onde está a graça em ver tudo de novo? Está, justamente, que não podemos prever o que dará certo ou não. Extremamente “calculadas”, mesmo quando parecem desleixadas, as drags nunca sabem, de fato, como serão decodificadas pelo público que assiste.
O fato de que não tivemos protagonistas absolutas aqui (como Bob the Drag Queen, na temporada 8, ou Bianca del Rio, na temporada 6) mostra que esta temporada foi deliciosa, e que Yvie Oddly – menos “azarona” que Sharon Needles, uma vez que já entendemos, ao longo da trajetória do programa, que a arte drag é multifacetada – representando todas as “estranhas” espalhadas pelo mundo, mereceu a vitória, pois a conquistou a duras penas. Longa vida a RuPaul e ao universo RuPaul’s Drag Race!