Mais uma temporada de RuPaul’s Drag Race se finda e mais uma vez testemunhamos o sucesso deste reality show cuja influência transcende seus limites na mídia televisiva. Programa iniciado timidamente em 2009, pelo canal Logo (um braço da gigante Viacom Media Networks direcionado ao público LGBT), a competição das drags logo conquistou o mundo, muito em parte por um poderoso boca a boca e pela perfeita sintonia com um público aberto e simpático ao discurso propagado pela atração comandada por RuPaul.
De programa televisivo, logo RuPaul’s Drag Race passou a ser um produto magistralmente adequado a um ambiente regido pela convergência de mídias, ou seja, em um momento no qual os espectadores não se satisfazem com a ação de simplesmente assistir ao show na televisão. Mais do que é isso, é preciso participar do mundo das drags – e as legiões gigantescas que povoam as páginas e listas de discussão das participantes e pagam caro para conhecê-las nos eventos promovidos pelo país só corroboram que RPDR fornece um universo riquíssimo para quem quer fazer parte do “clube” comandado por Mama Ru (e engana-se quem pensa que estes fãs incluem só mulheres e gays).
Nesta sétima temporada, a fórmula do sucesso permaneceu a mesma, ainda que com as sutis variações proporcionadas pelo elenco de personagens. O formato é claro. 14 drags, americanas natas ou latinas, competem em uma série de provas nas quais precisam demonstrar os mais variados talentos: devem saber costurar, dançar, cantar, atuar, dublar, compor, desfilar, fotografar, improvisar, criar. Devem ser versáteis em todas estas competências e ainda permanecer fiéis ao estilo de drag que trouxeram ao palco: há as pageant queens, que equivalem às misses de concurso, mais tradicionais; há as comediantes; há as que concretizam um estilo baseado na estranheza e na quebra dos paradigmas, mais punks; há as que querem quebrar a ditadura da estética e representam todas as chubbies, acima do peso; há as que arrasam no fishness, ou seja, são extremamente femininas, e por vezes são acusadas de confiar demais na própria beleza. Demasiadamente humanas, todas as participantes revelam-se extremamente complexas (não por acaso, uma das competições, the library, pressupõe improvisos para destruir a moral de uma oponente) e, ao decorrer das temporadas, costumam se confrontar com elas mesmas e com seus próprios preconceitos.
Como bom reality show, RuPaul’s Drag Race fornece um maravilhoso material de conversa e inspira, por meio das torcidas das participantes, discussões que apenas os desatentos considerariam superficial.
Um ponto fraco desta temporada talvez tenha sido uma baixa concentração de drags com personalidade forte, como Sharon Needles, na quarta (a gótica esquisita que vingou todos os underdogs e polemizou ao renovar o formato com seu estilo “drag saído de um filme de terror gore”) ou Bianca Del Rio, na sexta (cujo profissionalismo no drag e personalidade absurdamente ácida contrastavam com a doçura que revelava com as colegas entre os vários coices que soltava). Não houve grandes rivais, como Alyssa Edwards / Coco Montresse na quinta temporada. Os efeitos continuaram horrorosos: são extremamente tendenciosos e seguem como ótimos exemplos para os que defendem a bandeira de que “os reality shows mentem por meio da edição”– basta ver as montagens feitas nas interações das drags com os jurados, que claramente distorcem os contextos em que ocorreram, os efeitos sonoros que ecoam cada vez que RuPaul parece fazer uma crítica a uma concorrente ou os risíveis trovões antes de cada lip sync.
Ou seja, mesmo com sua suposta baixa qualidade como programa, RPDR mantém seu caráter viral e a cada temporada dá permanência à febre já consolidada nas temporadas anteriores. O que está em jogo para a sua imensa plateia? Conforme já apontado em outras análises, como a do site “Lugar de Mulher”, o universo provido por Ru e sua imensa equipe é extremamente inclusivo e prevê acolhimento a todos. Há vários elementos que estendem a experiência para além do programa, como os bordões proferidos por Ru e pelas participantes mais espirituosas. Como ao final de uma liturgia semanal, Ru fecha todos os programas com a frase If you can’t love yourself, how in the hell you gonna love somebody else?, a qual é sempre respondida por um coletivo “amém”. Em um best seller da autoajuda provavelmente soaria forçado, mas neste produto cult, torna-se uma espécie de lema para a vida.
Como bom reality show, RuPaul’s fornece um maravilhoso material de conversa e inspira, por meio das torcidas das participantes, discussões que apenas os desatentos considerariam superficial. Afinal, o que você considera mais importante na sua escala de valores: experiência de vida e consequentemente profissionalismo (Kennedy Davenport e Ginger Minj) ou o frescor da juventude ainda a ser lapidada (Violet Chachki)? Você acredita que esforço deve ser sempre recompensado, em contraposição àqueles que acertam, quase que por destino, ainda que não estejam tão comprometidos (Pearl)? Ou os que têm história triste cercada de sofrimentos devem encontrar a redenção no fim de suas jornadas (Katya, que revelou ainda lutar contra um vício em drogas)? Só os tontos não se dariam conta que, quando debatemos os realities que gostamos, falamos de nós mesmos – enquanto indivíduos e como sociedade.
Contemplando as diversidades – mesmo às externas ao mundo gay –, RuPaul’s Drag Race é um programa que faz todo o sentido em um momento em que o acesso à comunicação, diferentemente do que se imaginava, por vezes mais incita o ódio do que fomenta a tolerância. Sendo assim, fazer parte da comunidade RPDR não deixa de ser um ato político, e é de esperar que novas temporadas permaneçam gerando a mesma repercussão. Can I get an amen?
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