Ninguém nasce vilão, torna-se um. Talvez o maior de todos os méritos de Coringa seja a ousadia de defender essa tese, e retratar em detalhes a gênese do inimigo número 1 de Batman. O filme de Todd Phillips, mais conhecido pela franquia de comédias etílicas Se Beber, não Case, não apenas lhe confere humanidade, algo que O Cavaleiro das Trevas já havia feito em 2008, quando o personagem foi encarnado brilhantemente por Heath Ledger sob a batuta de Christopher Nolan. Se não o justifica por completo, o longa – vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza deste ano – o explica de forma visceral e perturbadora.
Em uma Gothan City hiper-realista, a anos luz dos delírios expressionistas de Tim Burton e mais próxima da Nova York da década de 1970, retratada por Martin Scorsese no clássico Taxi Driver, sombria, triste, opressiva, Arthur Fleck é a antítese do sonho americano, porque a ele tudo é negado. Está irremediavelmente à margem, não tem direito a nada. Vive só com a mãe, Penny (Frances Conroy, do seriado Six Feet Under), uma mulher doente e dependente, em um apartamento mínimo, num edifício decadente. Sobrevive de pequenos bicos, muitas vezes encarnando a figura de um palhaço, a qual pode incorporar uma condição física que o atormenta: Arthur sofre de um transtorno neurológico que o faz rir nas situações mais improváveis, sempre às gargalhadas.
Esse traço é de uma ironia profunda, porque a vida de Arthur, que tem muito em comum com Travis Bickle, personagem principal de Taxi Driver, não poderia ser mais triste, desoladora. Não tem amigos, ou a possibilidade de um amor, a não ser que seja platônico, como o que nutre pela vizinha Sophie (Zazie Beetz). A vida o trata aos chutes e pontapés em uma cultura, uma ordem social, regrada pelo capitalismo selvagem, onde estar fadado a perder é algo imperdoável, um pecado capital. Robert De Niro, astro do filme de Scorsese, não por acaso está em Coringa, como Murray Franklin, um hediondo apresentador de talk-show.
Somente um ator com a complexidade, e o talento, de Joaquin Phoenix, um dos grandes de sua geração, poderia dar conta da dimensão trágica e anti-heroica de Arthur. O astro de obras-primas como Ela, de Spike Jonze, e O Mestre, de Paul Thomas Anderson, nos quais vive personagens igualmente limítrofes, traz ao protagonista de Coringa toda a sua dimensão trágica. Quem vemos na tela não é um vilão, que emerge em uma trama maniqueísta, do confronto entre o bem e o mal. É, outrossim, o retrato devastador de um homem que aos poucos se dissolve na indiferença de uma sociedade que lhe nega um lugar, fechando todas as portas na sua cara, o humilha, agride, até que ele despenque do fio da navalha.
Somente um ator com a complexidade, e o talento, de Joaquin Phoenix, um dos grandes de sua geração, poderia dar conta da dimensão trágica e anti-heroica de Arthur.
Muito criticado por talvez reconhecer os motivos por trás da violência que em Arthur emerge com fúria, Coringa incomoda do primeiro ao último plano, porque, talvez, não saibamos o que fazer com ele. Repulsa ou piedade: eis a questão. Sua ressonância em tempos neofascistas é gigantesca, tanto que enquanto alguns enxergam no filme uma crítica ferrenha a uma ordem social capaz de produzir alguém como seu protagonista, outros acusam o longa de ser um elogio ao radicalismo, à violência justiceira que ele desencadeia em uma Gotham City imersa na desordem, no crime. Para mim, nessa dicotomia, e recusa de oferecer respostas binárias e simplificadoras, reside o que ele tem de melhor.
Não há como não enxergar no magnata Thomas Wayne (Brett Cullen), pai de um Bruce Wayne ainda menino, mas já angustiado, uma espécie de Donald Trump, defensor de um capitalismo sem sutilezas, mortífero. Não à toa, seu fim trágico, que determinará o destino de seu herdeiro, também está completamente ligado ao martírio de Arthur. Batman tem a mesma matriz de seu arqui-inimigo. Ninguém, afinal, nasce herói.
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