“Pegue a metade e deixe a metade”. Essas palavras saem como uma espécie de mantra da boca de Hatidze Muratova. É alerta, súplica e orientação. É manifestação de sabedoria que nasce da prática, da comprovação de quem sabe o que está falando porque viveu, experimentou, testou. É um pedido calmo e, ao mesmo tempo firme, insistente, do qual depende boa parte do futuro da humanidade. Exagero? Avancemos. Com a contextualização, o leitor terá condições de avaliar.
Hatidze Muratova é a personagem principal do documentário Honeyland (2019). Ele trata do cuidado que o ser humano deveria ter com as abelhas e foi indicado ao Oscar 2020 nas categorias de melhor filme internacional e melhor documentário. Em seu “mantra”, Hatidze refere-se à importância de coletar apenas a metade do mel nas colmeias e deixar o restante para a sobrevivência das abelhas. O filme, recentemente disponibilizado no Brasil pela plataforma Looke, lança a observação das lentes dirigidas por Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov de forma aparentemente onipresente no cotidiano de Hatidze Muratova. Ela é uma agricultora que vive praticamente sozinha em uma região rural da Macedônia do Norte que, apesar da beleza da geografia, parece ser um lugar onde ninguém mais chegou. Ou chegará. A solidão transborda da tela. Hatidze mora apenas com sua mãe, Nazife Muratova, uma senhora de 85 anos que está doente e não sai da cama. Além das duas, apenas alguns animais.
A principal atividade econômica da protagonista é a apicultura sustentável, na qual existe um cuidado simples – mas eficaz – de garantir que as abelhas que ofertam alimento também tenham o que comer. A aparente inacessibilidade ao local, que leva à solidão, é quebrada de forma repentina quando um casal de pecuaristas nômades e cheio de filhos instala-se na vizinhança.
A doçura da integração sábia com a natureza cede lugar ao amargo do desequilíbrio. E isso pode ser antecipado de forma inteligente pela direção de som que, nessa altura do filme, dá fortes indícios da instabilidade que virá. Um rebanho de bois e vacas extremamente barulhento enche os ouvidos dos espectadores de mugidos, pulam e derrubam cercas, lutam contra cordas lançadas ao redor de seus chifres, reproduzem-se. As crianças, por sua vez, gritam, choram e brigam. Os vizinhos conversam bastante, discutem bastante.
A doçura da integração sábia com a natureza cede lugar ao amargo do desequilíbrio. E isso pode ser antecipado de forma inteligente pela direção de som que, nessa altura do filme, dá fortes indícios da instabilidade que virá.
Uma das primeiras ações do novo morador dessa região antes tão silenciosa, com sua “autoridade de patriarca”, é sacrificar o “pegue a metade e deixe a metade”. O comportamento do vizinho, a princípio uma atitude desesperada para alimentar os filhos, pode ser lido como metáfora da ganância do capitalismo desenfreado em oposição às técnicas do desenvolvimento sustentável. A consequência imediata disso é que as abelhas dele, com fome, passam a atacar as colmeias da vizinhança, ou seja, as colmeias antes exploradas com responsabilidade por Hatidze.
É louvável o comprometimento da equipe de filmagem, composta por quatro pessoas em razão das dificuldades de acesso à aldeia onde as ações acontecem. Eles passaram três anos acompanhando a trajetória de sua protagonista, o que resultou em cem dias de captação de imagens que registram diversos detalhes de sua vida, nos mais diferentes momentos do dia. Os cineastas adotam a técnica da “mosca na parede”, de não intervenção, na qual quem filma torna-se totalmente invisível para quem assiste, inexistindo qualquer interação direta com os personagens na forma de entrevistas.
E, com toda essa dedicação, a equipe entrega para o mundo um produto que lança todos os seus holofotes para o comportamento sábio e discreto de uma mulher solitária, que vive em uma região “perdida” nos confins da Macedônia do Norte. É dessa mulher extremamente pobre, moradora de um lugar longínquo, que vem um grito de alerta dirigido a todo o planeta. A mensagem quase desesperada que o documentário lança em meio à beleza e à poesia das imagens é de importância incontestável. E está muito longe de ser um grito daqueles que alguns, muito pejorativamente, denominam de “ecochatos”.
As abelhas são essenciais no processo de reprodução das plantas, que fornecem alimentos e compõem florestas responsáveis pelo equilíbrio do clima na Terra. Várias organizações de defesa do meio ambiente, bem como a Organização das Nações Unidas (ONU), já alertaram para os riscos de escassez de alimentos em razão da morte em massa de insetos responsáveis pela polinização. Esse é o processo de condução do material genético da parte masculina para a parte feminina das flores, o que gera os frutos, que geram as sementes, que permitem a reprodução das plantas. As abelhas são mediadoras importantes nesse ciclo benéfico.
O documentário não se aprofunda nessa questão, partindo da ideia de que o espectador já sabe de tudo isso. E avança para mostrar a simplicidade de uma apicultora consciente diante de uma família que representa o desrespeito contra o meio ambiente.
Com a beleza das imagens, o cuidado no uso da luz natural nos enquadramentos, a espontaneidade da relação entre mãe e filha, a riqueza de detalhes captados e o caráter universal de denúncia do comportamento destruidor do ser humano frente à natureza, o documentário pode ser considerado um dos melhores filmes realizados nos últimos tempos.
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