Um caminhante incansável, multiartista inquieto, tão utópico quanto genial. Um homem imprescindível, disseram alguns. São muitas as formas, incontáveis os adjetivos, infinitas as maneiras de tentar, sem sucesso, definir a personalidade, a importância ou o tamanho da contribuição de Antonio Bivar para a cultura brasileira. Como sua obra, Bivar também está acima de classificações ou catalogações. Não era isso ou aquilo, era tudo.
Escrevendo, dirigindo ou produzindo sempre foi muito, com a intensidade necessária e a coragem imprescindível aos que desejam fazer do mundo um lugar melhor. Em cima do palco, no escuro dos bastidores, atrás de uma máquina de escrever ou com um bloco de notas em mãos; fosse como fosse não havia ocasião, situação ou obra em que Antonio Bivar não esbanjasse conhecimento, talento e rebeldia para fazer aquilo que soube fazer melhor: inventar um mundo novo, mesmo que passageiro. Defensor ferrenho da liberdade e dono de um sorriso tão debochado quanto cativante, o dramaturgo nos deixou no último domingo, 05, vítima da COVID-19.
Domingo passado, o Brasil registrava a terrível marca de 64.900 mortes confirmadas por conta do coronavírus. Hoje, dia 10, o número ultrapassa a marca dos 69 mil e a tendência é de que continue a subir nos próximos dias. São milhares de brasileiros transformados em estatísticas, vítimas não só do vírus desconhecido como também do atual governo, omisso e criminoso no combate à pandemia. Antonio Bivar foi mais um desses brasileiros. Aos 81 anos, a maioria deles dedicados à cultura da pátria que o atirou à boca dos leões, deixou um legado artístico frutífero e ruidoso. Figura central da famosa Geração de 1969, Antonio, ao lado de outros grandes dramaturgos, ajudou a redefinir e reinventar o teatro brasileiro na virada dos anos 60 para os anos 70.
Nascido Antonio Bivar Battistetti Lima, na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, ano de 1939, Antonio Bivar, como ficou conhecido, passou sua infância entre a capital paulista e as fazendas do interior do estado. Essa relação entre a metrópole e o interior pode não estar absolutamente clara em sua obra, mas marca profundamente o jovem que viria a se tornar um dos grandes dramaturgos do país. Da juventude em Ribeirão guardou pra sempre a insubmissão e a revolta, a essa época tomava pra si o título de beatnik, que mais tarde seriam o combustível principal de suas obras. Além do talento para a escrita, o teatro surge logo na vida de Bivar como catalisador de suas crenças em relação ao mundo. Por isso, decide se dedicar às artes cênicas, partindo então para a cidade do Rio de Janeiro para estudar, primeiramente, na Fundação Brasileira de Teatro e, posteriormente, no Conservatório Nacional.
À época, o Rio era uma espécie de paraíso, onde arte e cultura ajudavam a definir uma capital boêmia e incandescente. O primeiro espetáculo profissional é Cordélia Brasil, com autoria de Bivar, direção de Emílio Di Biasi e elenco primoroso: Luís Jamim, Norma Bengell e Paulo Bianco. Proibida pela censura ainda nos ensaios, como Barrela, de Plínio Marcos, e Santidade, de José Vicente, a peça só estreia graças à mobilização de artistas. O espetáculo consagra Antonio Bivar como um dos grandes dramaturgos brasileiros e torna-se, nas palavras de Sábato Magaldi, “um clássico do moderno repertório brasileiro”. A peça estreia no Rio de Janeiro em 67 e faz temporada no Teatro de Arena, em São Paulo, abocanhando prêmios e conquistando prestígio.
No ano seguinte, 1968, Antonio Bivar estreia aquela que seria a sua peça mais premiada: Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manhã. O espetáculo rendeu a Bivar o prêmio mais cobiçado e importante, aquele que durante muito tempo foi considerado o Oscar do teatro brasileiro, o famoso Prêmio Molière. Com direção do gigantesco Fauzi Arap e atuações memoráveis de Maria Della Costa, Thelma Reston e Yolanda Cardoso, o espetáculo conta a vida de duas presidiárias. A partir daí, Antonio Bivar produz de maneira insistente e abundante até ter de se mandar pra Londres como artista exilado.
Biógrafo de Kerouac e James Dean, Bivar sempre foi um antropófago a devorar incansavelmente a realidade e a cultura com a qual se deparava.
Em Londres, Bivar não para. Convive com Caetano, Gil, Mautner e colabora com Antônio Abujamra. A temporada forçada em terras inglesas é uma das fontes que desaguam no extraordinário Verdes Vales do Fim do Mundo, livro que o consagra como literato. Ainda em Londres, no início dos 70, toma contato com o movimento Punk que, mais tarde, marcaria Antonio Bivar como um dos grandes catalizadores musicais do país. O dramaturgo torna-se figura constante da gélida paisagem londrina por pouco mais de um ano. De volta ao Brasil, passa a se dedicar a outras frentes artísticas, sem deixar de lado o teatro.
O que é punk? O começo do fim do mundo
Antonio Bivar, nos anos 80, é figura central do movimento punk brasileiro. Autor de um dos guias para compreender o movimento, sua edição lançada pela coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, é livro de cabeceira para todos que viveram a ascensão do punk em terras tupiniquins. Em 1982, no Sesc Pompeia, aconteceu o maior festival punk brasileiro. Organizado por Bivar e Callegari, o evento teve o propósito de firmar união entre grupos punks.
Além de documentários diversos, tendo o Botinada como o mais conhecido, o festival foi gravado em tape-deck e é hoje uma das relíquias de um Brasil combativo. Fizeram parte da coisa bandas como Olho Seco, Cólera, Inocentes, Decadência Social, Lixomania e muitos outros. Marco de uma geração, o começo do fim do mundo é a prova de que a rebeldia e a modernidade de Antonio Bivar nunca sofreram com a ação do tempo. Biógrafo de Kerouac e James Dean, Bivar sempre foi um antropófago a devorar incansavelmente a realidade e a cultura com a qual se deparava. “Só me interessa o que não é meu”, diria o dramaturgo entre quatro paredes, diariamente, em defesa de sua fome estética.
Antonio Bivar foi um brasileiro gigante, um caminhante incansável que sempre mirou o horizonte utópico em busca de um motivo para seguir adiante. Caminhar é preciso, tanto quanto sonhar, e por mais que o mundo nos sufoque, nos engasgue com o soro da impossibilidade e o vírus da impotência, por mais que seja preciso inflar o peito cansado para resistir, sabemos que ainda é possível tocar o barco. Bivar, timoneiro punk, nos deixa essa certeza. Antonio, o garoto de Ribeirão, nos deixa a saudade que só guardamos aos que realmente merecem. Obrigado por tudo, velho punk.
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