É difícil perceber quando estamos diante da história sendo escrita. Evidentemente, ela é feita dia-a-dia, num fluxo contínuo e frenético. No entanto, temos o olhar embrutecido por um mundo que não nos permite momentos de contemplação. Saberiam os estudantes que tomaram as ruas de Paris, no Maio de 1968, que estavam mudando o mundo? Hitler percebeu, em algum momento, que seu ato odioso estaria pra sempre nos livros?
Muitas vezes somos assaltados por uma impossibilidade de perceber a grandiosidade daquilo que presenciamos e acabamos não dando a devida importância ao que acontece diante de nossos olhos, ou de nossas almas. Algumas vezes, porém, percebemos que estamos diante de um acontecimento que pode sim ficar marcado pra sempre em nossos corações. Foi isso que aconteceu na première mundial do filme A Vida é Estranha, de Mossa Bildner, no 4º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
O filme era, sem sombra de dúvidas, o mais aguardado da programação do Festival. Muito desse entusiasmo se deve ao cineasta Glauber Rocha, responsável, juntamente com Mossa Bildner, pelo registro das imagens que formam o filme.

A diretora deu início aos trabalhos agradecendo aos envolvidos na montagem, sem os quais seria impossível nos entregar as imagens.
A diretora deu início aos trabalhos agradecendo aos envolvidos na montagem, sem os quais seria impossível nos entregar as imagens, que foram gravadas mais de 40 anos atrás com uma câmera Super 8. As imagens foram feita pelo cineasta e pela musicista em viagem a cidade de Essaouira, no Marrocos.
Num misto de imagens da cidade, de Glauber, de Mossa e de amigos, somos transportados para dentro do olhar de Glauber Rocha em relação à paisagem e pessoas que compõe o cenário da obra. Fumaça, olhares, impressões e personagens nos saltam aos olhos em uma espécie de ritual cinematográfico. A câmera em transe nos transporta para dentro de um filme, que é uma obra pessoal e histórica de um dos maiores cineastas do mundo, tudo organizado pela sua musa à época. O filme trata de paixões, sejam elas quais forem.
Ao final, uma emocionada diretora toma o palco com certo nervosismo, encoberto pelo entusiasmo e pela emoção de ver na tela uma parte de sua vida que só existe enquanto lembrança. A princípio, a diretora pensou em usar músicas da época, que ela e Glauber gostavam, como Jimi Hendrix, por exemplo. No entanto, a impossibilidade de pagar os direitos autorais, segundo Mossa, fez com que ela e William Biagioli, da equipe de produção do Olhar de Cinema e responsável por auxiliá-la na montagem, optassem pela criação da trilha.

Entre histórias de amor, como o início da paixão pelo cineasta e o dia-a-dia do casal durante as filmagens, fomos transportados pela memória da diretora para dentro de um período onde a emoção era maior que a razão, como ela mesmo deixou claro ao responder sobre a primeira impressão que ela mesma teve do filme. Mossa ainda deixou claro que não alterou as imagens, tudo em função do respeito e carinho que tem para com o companheiro. Assim, o que vemos na tela é algo bruto, saído de seu olhar e do cineasta, ou seja, um privilégio para todos os presentes na sala.
Ao final, Mossa disse que na época, as distrações eram limitadas, por isso, mais intensas e verdadeiras. Ao comentar a possibilidade de diversão encontrada em smartphones, a diretora deixa claro que os momentos que vivemos hoje são, de alguma forma, “plastificados” e, por isso, “banalizamos momentos preciosos”. A afirmação, além de verdadeira, diz muito sobre o próprio filme.

Algumas obras não precisam ser compreendidas, mas sentidas. Eu estive durante o tempo todo, abraçado a Glauber, Mossa, Letícia e o povo marroquino. Um filme feito através dos olhos da paixão, não pode ser assistido senão como uma janela da alma daqueles que o produziram.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.