É inevitável, para quem assistiu a Central do Brasil, encontrar paralelos entre o longa-metragem de Walter Moreira Salles e Relatos do Mundo, filme do diretor britânico Paul Greengrass (de Voo United 93 e Capitão Phillips), coproduzido e lançado pela Netflix. Ambos têm premissas semelhantes. Adultos próximos da velhice, algo à deriva, atropelados por crianças desamparadas, que deles passam a depender em uma busca de alguma estrutura familiar que os proteja.
Como Dora, a professora vivida por Fernanda Montenegro em Central do Brasil, o protagonista de Relatos do Mundo, Capitão Kidd (Tom Hanks), ganha a vida por meio da comunicação. Enquanto ela escreve e lê cartas para analfabetos em trânsito pela estação de trem no Rio de Janeiro, ele, veterano confederado da Guerra Civil americana, sobrevive da leitura itinerante de jornais, percorrendo o Velho Oeste, mais precisamente o Texas.
A natureza exuberante do Oeste, assim como o agreste nordestino em Central do Brasil, se em alguns momentos impregna o filme de beleza, também é hostil e fonte de terror.
Josué (Vinicius de Oliveira), o garoto que vê a mãe ser atropelada e conta com Dora para reencontrar o pai e os irmão no drama brasileiro, é Johanna (a alemã Helena Zengel), que perde a família duas vezes em Relatos do Mundo. Primeiro, seus pais biológicos são assassinados por índios kiowa, com quem ela passa a viver até eles serem mortos por brancos. Cabe a Kidd, levá até os tios, seus únicos parentes vivos. Ela é, portanto, duplamente órfã.
O que se segue é uma jornada de travessia do deserto (sempre no Texas). Se em Central do Brasil, a viagem de Dora e Josué é uma mergulho pelo Nordeste, onde vive a família do menino, a busca pelos parentes de Johanna tem muito a ver com a tradição de filmes sobre o desbravamento do Oeste americano, um dos temas fundamentais do western.
A forma de Paul Greengrass retratar essa paisagem tão mítica no cinema americano clássico é diferente, talvez em razão de o diretor não ser norte-americano. Sua visão tanto da geografia física quanto humana é mais árida. Tom Hanks, paradigma da virtude com seus personagens em Hollywood, vive um herói nuançado, algo melancólico, mas bem intencionado. Mas se ele é determinado em sua missão de conduzir Johanna a seus familiares, o que preserva elementos tradicionais da narrativa épica do western, como a moralidade e o heroísmo, quase todos os demais personagens representam um mundo cruel, em desalinho.
A Guerra Civil deixou uma ressaca, um saldo desolador de violência contra os índios e racismo, o tráfico de pessoas, a usurpação da terra, o abuso sexual normalizado.
A natureza exuberante do Oeste, assim como o agreste nordestino em Central do Brasil, se em alguns momentos impregna o filme de beleza, também é hostil e fonte de terror: há escassez de água, tempestade de areia, animais peçonhentos. O mundo natural é ao mesmo tempo fonte de vida e de morte. Isso é muito interessante em um filme que transita entre a luz e a sombra, mas, por fim, revela-se esperançoso, na figura de Johanna, que ganha um futuro, como Josué, em Central do Brasil. Capitão Kidd e Dora, por sua vez, se irmanam nas suas tocantes redenções pessoais.
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