No primeiro episódio de I may destroy you, série da HBO, somos arrastados para dentro da vida divertidíssima de Arabella Essiedu, uma escritora inglesa de origem ganesa, que está escrevendo um novo livro, após o sucesso do primeiro, uma compilação de postagens do seu Twitter. Super cool (ela veste roupas descoladas e usa o cabelo rosa), Arabella, como todo jovem, está enredada entre seus compromissos (a entrega atrasada do seu novo livro) e sua agitada vida social. Para desopilar da pressão, aceita ir para um bar com os amigos. No dia seguinte, de ressaca, ela tem uma espécie de insight: tem alguns relances com a imagem de um homem em cima dela, o que leva a crer que tenha sido estuprada na noite anterior.
Este primeiro episódio é o único que percorre uma narrativa essencialmente linear. Nos demais, entraremos numa intrincada história que intercala passado e presente para discutir, de forma densa, os ânimos atuais da subjetividade de todos – especialmente dos jovens millenials, a quem só restou a fugacidade dos prazeres imediatos, como o sexo casual e as drogas (não por acaso, o primeiro livro da escritora Arabella tem como título Uma millenial de saco cheio). Arabella e seus amigos (a atriz Terry e o instrutor de academia Kwane) passarão, durante toda a série, por percalços que levam a pensar o quanto a “tal liberdade” à qual sua geração tem direito é benéfica ou aprisionadora.
Arabella (que é personificada pela Michaela Coel, a autora de I may destroy you, que tira elementos de sua história pessoal para escrever o roteiro), ao se dar conta do estupro, entra em um espiral na qual a sua alegria e leveza – ela é mostrada em muitas festas e nitidamente se divertindo ao lado dos amigos – são tiradas dela quando ela nota ter sido vítima de estupro. É como se Arabella vivesse até ali uma vida algo sonhada e, a partir daquele momento, toda a sua inocência fosse roubada. Não obstante, o abuso não ocorre apenas com ela: a amiga Terry, ao participar de um ménage na Itália, sente-se super empoderada, mas logo mais constatará que pode ter sido vítima de uma manipulação; Kwane, que é gay, está obcecado por encontros sexuais que marca pelo Grindr, e não sabe o que sentir quando ele mesmo é violentado num desses encontros, ao qual foi voluntariamente.
Obviamente, a trama de I may destroy you se centraliza na discussão sobre estupro, mas levanta uma série de questões que ficam suspensas, pedindo a reflexão do espectador.
Obviamente, a trama de I may destroy you se centraliza na discussão sobre estupro, mas levanta uma série de questões que ficam suspensas, pedindo a reflexão do espectador: quem se entrega ao sexo casual, ao uso excessivo de drogas e se mete nas situações mais arriscadas, pode reclamar quando é abusado? Quais os “usos” que as pessoas abusadas fazem do crime que as acometeu? O que define estupro, afinal? (Para quem acha que a resposta a isso é óbvia e simples a todo mundo, sugiro a leitura de Missoula, livro reportagem de Jon Krakauer).
São todas essas questões levantadas pelo texto multifacetado de Michaela Coel que fizeram de I may destroy you um sucesso de público e crítica, incensada como uma das melhores coisas na televisão em 2020. Vale relembrar que a série também toca em discussões ligadas ao racismo (importante ressaltar que praticamente todo o elenco é formado por atores negros) e à vulnerabilidade sofrida especialmente pelas mulheres e gays, grupos minoritários de poder. Nesse sentido, destaco aqui a pertinente análise feita por Maria Clara Drummond, que observa o quanto o ideal de “sexo, drogas e rock and roll” desde sempre favoreceu homens brancos. “Sobretudo, em geral são homens brancos, ricos, poderosos, protegidos pela fama, que podiam experimentar à vontade, fazer o uso que quisessem de seus corpos, e até, em alguns casos, impunemente, abusar do corpo dos outros. Mas, quando essa mesma experimentação é feita longe das esferas de poder, há uma profusão de riscos que a série tão habilmente explora”, pontua com precisão.
De ritmo ágil e fotografia que se intercala entre o sombrio e o efusivo, I may destroy you não é uma obra fácil, nem feita para o paladar de todos. Há ainda algumas lacunas de roteiro (como o amigo casado do primeiro episódio, cuja mulher e amante nunca são “amarradas” na história, e o roomate estranho de Arabella que parece pendente na trama). O último episódio, com toques surrealistas a la David Lynch, também pode desagradar a muita gente. Ainda assim, é uma série contundente como poucas – por isso, merece ser assistida por todos nós.