Quando Kafka entregou à mãe a sua Carta ao Pai sabia que a correspondência jamais chegaria ao seu destinatário. O texto, que antes de ser uma narrativa literária, era realmente uma missiva se transformou em um dos maiores elementos da literatura mundial e pode, por si só, ter se tornado uma espécie de gênero à parte.
O ar que me falta, de Luiz Schwarcz, segue a tradição deixada pelo escritor tcheco e retrata em uma longa narrativa a relação silenciosa com pai, André – um húngaro que veio para o Brasil fugindo dos nazistas, mas que apenas conseguiu sobreviver porque o seu próprio pai, avô do fundador da Companhia das Letras, se entregou em sacrifício.
O ar que me falta compartilha com Kafka o tom de desabafo e acerto de contas, mas aqui o duelo é com o próprio autor.
Se a memória pode ser seletiva, essa escolha não necessariamente resulta num catálogo de alegrias. Não são raras as vezes em que a mente insiste em trazer à tona um acervo de dores e angústia, algumas delas quase impossíveis de serem identificadas.
O ar que me falta parte do mistério familiar que rondava os Schwarcz e que, aos poucos, foi desembocando em uma depressão permanente em Luiz. Longe da imagem do empreendedor de sucesso, o livro desnuda o homem e o coloca na vitrine. Naquelas páginas, o editor é lançados aos seus leões, feras que alimentou inconscientemente.
Em 2010, José Castello publicou Ribamar, um romance cujas “coincidências” entre ficção e realidade confundiram muita gente. O limite era tênue – vivíamos o auge da autoficção e esse embaralhamento fazia parte do jogo narrativo – e não foram poucos os que atribuíram ao livro um tom unicamente memorialístico. Castello construir um texto mais bonitos sobre a relação entre pai e filho, abordou as suas dores para humanizar seu personagem e fez do seu Ribamar alguém muito parecido com André Schwarcz.
As lembranças do narrador são um convite à reflexão da nossa identidade enquanto nação. O garoto assustado, impedido de jogar bola no campo de terra ao lado do apartamento em que morava com os pais, se vê na adolescência um líder nato. Toda essa segurança coloca no escuro uma angústia que não é capaz de nomear, mas que é sublimada pela música e pela literatura.
Era um tempo em que vivia entre o som e a fúria, e aquele era também um Brasil de muitas desigualdades, de um país subdesenvolvido e de analfabetismo extremo. A pobreza era uma realidade para a imensa maioria dos brasileiros. Fosse Luiz Schwarcz também um miserável, poderia se colocar no luxo da autoanálise? Muito provavelmente não. Ainda que exista uma preocupação permanente com a empatia e identificação, essa percepção aparece em muitos detalhes ao longo do livro.
Isso não diminui em nada a dor que Schwarcz carrega consigo – e nem a beleza da autodescoberta –, porém, não deixa de revelar que o Brasil da sua infância ainda perdura e é o país de uma multidão que nega vacinas e torce por um golpe. O ar que me falta compartilha com Kafka o tom de desabafo e acerto de contas, mas aqui o duelo é com o próprio autor. Antes de tudo, entretanto, pode-se dizer que o livro é uma experiência sensível de reconstrução e resgate, mas é também uma espécie de exercício para olhar adiante por cima de todo esse vale de sombras.
O AR QUE ME FALTA | Luiz Schwarcz
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 200 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2021.