Há 20 anos, o The Smashing Pumpkins lançava o disco definidor de sua carreira, Mellon Collie & The Infinite Sadness, lembrado até hoje como o disco mais pretensioso da banda (era duplo) e cheio de arestas emocionais mal aparadas, evidenciando as desilusões e profundas melancolias de Billy Corgan. Acontece que muita gente jovem se sentia da mesma forma que ele e o rock dos Pumpkins viraram a perfeita tradução daquele estado emocional na época. Tristeza sim, mas com música raivosa, vigorosa e distorcida.
Apesar de todos os bons discos que foram lançados aproveitando essa relação entre rock, a tristeza e a juventude, só agora temos um verdadeiro sucessor de Mellon Collie. Chama-se The Most Lamentable Tragedy da banda americana Titus Andronicus. Um petardo de 29 canções e 93 minutos de duração. Uma ópera rock criada pelo cantor e líder do grupo, Patrick Stickles, um maníaco-depressivo, que tem usado a música como uma forma de expressar toda a sua problemática com o mundo ao seu redor.
Não faz mal se você nunca ouviu falar em Titus Andronicus. Não são tão conhecidos nem mesmo nos EUA, e a própria banda, alinhada ao movimento punk do it yourself, é avessa à fama. Mas as apostas são que, dada à qualidade e originalidade de The Most Lamentable Tragedy, ficará difícil a banda passar despercebida daqui para frente. Já era um grupo de culto e esse processo tende a se intensificar a agora.
O disco trafega pelo punk, indie, pop e por algumas experimentações, sempre muito guitarreiro e cheio de som, seja nas rascantes “Fired Up”, “Dimed Out”, “Stranded (on My Own)” e “I’m Going Insane” ou nas mais acessíveis “I Lost My Mind (+@)”, “Mr. E. Mann”, “Fatal Flaw”, “Lonely Boy” e “Come on, Siobhán”. As letras, longas e quase sempre sem refrães repetitivos, retratam o percurso de um herói que sofre com sua depressão, encontra-se com seu duplo (que é como ele, mas age diferente) e como isso afeta sua relação com a sociedade, com a religião, com os pais, a escola e com as mulheres. Stickles vocifera boa parte das letras, deixando claro que se a música nos parece “animada” deve ser por causa daqueles ansiolíticos que alteram a química do cérebro e nos fazem parecer bem, mas lá no fundo, no eu profundo, a inadequação e o sentimento esquizoide ainda nos assombra.
“Stickles vocifera boa parte das letras, deixando claro que se a música nos parece ‘animada’ deve ser por causa daqueles ansiolíticos.”
A banda Titus Andronicus foi formada em Nova Jersey, mas está baseado em Nova York agora. Possuem quatro álbuns no currículo e todos são autobiografias de Patrick Stickles, seu problemático líder. Ou são biografias de Stickles escritas pelo próprio em terceira pessoa, aquele joguinho de falar de si dando a entender que pode ser de outro também. E se produzir um disco sobre si mesmo como ópera rock de 93 minutos não fosse o suficiente, The Most Lamentable Tragedy faz várias referências a músicas dos discos anteriores e meio que encerra esse arco narrativo do grupo iniciado em 2008 com o primeiro álbum. Além disso, o álbum The Monitor (2010) traçava uma metáfora entre a vida conturbada do vocalista com a Guerra Civil americana. O punk nunca foi tão pretensioso.
A tristeza e o rock tem uma relação ancestral, ainda mais se pensarmos que o blues americano – que deu origem ao rock mais tarde e, por sua vez, é originário das populações afrodescendentes – era o cântico de profunda tristeza dos negros nas áreas rurais dos Estados Unidos. Essa melancolia sempre esteve presente no rock’n’roll, seja em forma de blue note ou pela preferência das escalas menores da maioria dos compositores. Embora o Mellon Collie & The Infinite Sadness seja uma benchmark nessa seara, não dá para esquecer que Nevermind, do Nirvana, é influente até hoje (só que mais cru e sem pretensão) e que o Radiohead trouxe a inadequação humana para sua música com The Bends, bem no momento em que a Inglaterra vivia a explosão do britpop. Outro grande antecedente é The Wall, do Pink Floyd, uma ópera rock que acompanha as tristes experiências de vida de um também autobiográfico-de-3ª-pessoa Roger Waters.
The Most Lamentable Tragedy não tem faixas ruins, mas é tão longo e tão denso (ouça com as letras ao alcance dos olhos) que a experiência pode tornar-se um pouco pesada. Apesar da tristeza, são as angústias de Patrick Stickles que dão o tom do álbum. Tem até um cover de Daniel Johnson, outra figura de culto da música indie e também ele um maníaco-depressivo. Porém, apesar de tudo, não é um disco de cortar os pulsos. É a doença se convertendo em uma forma de música direta e boa de ouvir como há tempos não ouvíamos.
É provável que não alcance a fama de Mellon Collie e este seja mesmo o plano de Stickles, um homem que não combina de forma alguma com a celebridade. Embora o álbum seja encarado como uma conclusão, tenho minhas dúvidas se os próximos lançamentos não seguirão pelo mesmo caminho. Uma alma atormentada que já submeteu-se até a tratamento de choques deve ter muito mais angústias para relatar. Afinal, a melancolia e a infinita tristeza juvenil estão longe de ter um fim. Que dirá a angústia humana.