O cinema do diretor mexicano Guillermo del Toro sempre pediu do espectador a suspensão da descrença. Em um de seus filmes mais importantes, O Labirinto do Fauno (2006), o cineasta recorre ao fantástico, seu território ficcional predileto, para falar do fascismo na Espanha do ditador Francisco Franco.
Já em A Forma da Água (2017), que lhe deu os Oscar de melhor filme e direção, além de o Leão de Ouro no Festival de Veneza, ele revisita os filmes B de terror e ficção científica dos anos 1950, para construir a poética história de amor entre uma simplória operária e uma criatura marinha. É, também, uma alegoria sobre os medos da Guerra Fria e do macarthismo do pós-Segunda Guerra Mundial.
O Beco do Pesadelo, mais recente longa-metragem de Del Toro, vai em outra direção. Não conduz o público a dimensões imaginárias ou lhe propõe qualquer pacto, o convencendo a acreditar em criaturas sobrenaturais ou surreais. Muito pelo contrário: o mexicano fez um filme sobre o engano como forma de sobrevivência em um mundo cruel.
Del Toro revisita o romance Nightmare Alley, do norte-americano William Lindsey Gresham, adaptado pela primeira vez para o cinema em 1947 em O Beco das Almas Perdidas, de Edmund Goulding, que trazia o astro hollywoodiano Tyrone Power no papel de Stanton Carlisle. O personagem, em O Beco do Pesadelo, é vivido por Bradley Cooper (de Nasce uma Estrela), também um dos produtores do filme.
Carlisle é um protagonista arquetípico do cinema e da literatura noir da década de 1940: é um anti-herói, atormentado por um passado nebuloso, um sujeito ao mesmo tempo sedutor, cativante, mas sempre a um passo da falência moral.
Nas primeiras cenas do filme de Toro o vemos escondendo um corpo e ateando fogo a uma casa abandonada numa isolada região rural. Ele então sobe em um ônibus em direção do sul dos Estados Unidos, onde desembarca e encontra um parque de diversões itinerante, no qual quase todos vivem de enganar o público – assim como o próprio Del Toro e seu cinema de ilusões e criaturas fantásticas. É o lugar perfeito para Carlisle. Todos, de certa forma, são restos humanos como ele.
No parque, há figuras excêntricas como Clem Oastley (William Dafoe), que explora sem qualquer pudor um homem reduzido à condição de besta monstruosa (geek), que se alimenta de animais vivos e está sempre narcotizado. Lá, Carlisle também se envolve com a taróloga Zeena (Toni Collette, excelente) e seu marido, Pete (o ótimo David Straithairn), um ilusionista alcoolista, que começa a lhe ensinar o seu ofício, dando-lhe dicas de como ludibriar o público. Nesse circo do bizarro, ele também vai se apaixonar pela ingênua Molly (Rooney Mara), jovem que ganha a vida fazendo o público acreditar que traz eletricidade no próprio corpo.
Indicado a quatro Oscar – melhor filme, fotografia, direção de arte, figurino e direção de arte –, O Beco de Pesadelo é um envolvente drama noir, sobre um mundo moralmente fraturado.
Ao enxergar no ilusionismo, ou seja, na capacidade de enganar como forma de entretenimento, uma saída para a miséria, Carlisle foge com Molly para uma cidade grande, onde vai se tornar atração de uma casa noturna sofisticada, frequentada por pessoas endinheiradas e com poder. Em uma de suas apresentações, ele também conhece a suposta psiquiatra Lillith Ritter (Cate Blachett, um pouco over em sua composição da personagem), com quem ele se envolverá.
A “doutora” o ajudará a aplicar golpes que lhe trarão muito dinheiro, explorando a fé de pacientes seus, pessoas vulneráveis, apesar de poderosas. A psicanálise, à época uma atividade exercida sem muitos critérios científicos, também é tratada pelo filme como uma forma de ilusionismo, de engano.
Indicado a quatro Oscar – melhor filme, fotografia, direção de arte, figurino e direção de arte –, O Beco de Pesadelo é um envolvente drama noir, sobre um mundo moralmente fraturado, onde quase ninguém presta. É visualmente deslumbrante, hipnótico até, marca recorrente na obra de Del Toro, mas seu roteiro talvez seja um pouco linear e explicativo demais, o que contrasta com seu apuro estético.
O desfecho da trama, assim, não chega a exatamente surpreender. Mas o elenco, liderado por Cooper, que brilha como Carlisle, é estelar, mesmo que em participações pequenas, como a de Richard Jenkins, excepcional no papel de um dos milionários ludibriados por Carlisle.
Ao abandonar, pelo menos por ora, o território do fantástico, Del Toro traz para O Beco do Pesadelo um melancólico tom de desesperança e desilusão. É o olhar de um artista mexicano ao mesmo tempo fascinado e desencantado pelo “sonho americano”.
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