O novo longa-metragem do cineasta norte-americano Paul Thomas Anderson, o adorável Licorice Pizza, em cartaz nos cinemas brasileiros, é, aparentemente, mais leve e palatável do que outros filmes do diretor, como os mais densos, para não dizer angustiantes, Sangue Negro (2007) e O Mestre (2012). Mas não se iluda: o despojamento, a leveza, aqui não se confundem com superficialidade, ou ingenuidade, nem em sua forma ou no conteúdo.
Com três indicações ao Oscar, incluindo melhor filme e direção, Licorice Pizza é, em tese, uma comédia romântica, mas, na prática, extrapola – e muito – os limites desse gênero tão subestimado.
Na Califórnia dos psicodélicos anos 1970, durante o governo do presidente republicano Richard Nixon, um casal improvável tem seus caminhos cruzados. Gary (Craig Hoffman, filho de Phillip Seymour Hoffman, ator recorrente na filmografia de Anderson) é um garoto de 15 anos bastante atípico. Desde a infância, ele vem atuando como ator mirim em filmes e programas de tevê. Conhece, portanto, Hollywood do lado de dentro, seus mecanismos, crimes e pecados, apesar da pouca idade. Tanto que já é o principal provedor da família, formada pela mãe e um irmão mais novo.
A despeito disso, e de uma bem-ensaiada, porém algo falsa autoconfiança, Gary também é um adolescente como outro qualquer. Gorducho, com espinhas no rosto, ele conhece, durante uma sessão de fotos no seu colégio, Alana (Alana Haim, da banda The Haims, em sua estreia no cinema), uma jovem de 25 anos, por quem ele se apaixona à primeira vista.
Ela, por sua vez, também fica intrigada, porém o descarta com veemência porque Gary é muito novo. Aos poucos, todavia, a atração se tornará recíproca.
A terceira indicação ao Oscar de Licorice Pizza é a de melhor roteiro original, também assinado por PTA (como o diretor é chamado), que tem boas chances de levar sua primeira estatueta – seu principal rival é o irlandês Kenneth Branagh, por Belfast.
O maior mérito, e ousadia, da narrativa no filme de Anderson é desconstruir o tradicional roteiro hollywoodiano em três atos. Embora não haja quebra de linearidade cronológica, o cineasta evita plot twists (reviravoltas), optando por uma estrutura mais episódica, solta, sem deixar tão clara a passagem do tempo, ou a conexão entre os acontecimentos. Essa opção, com muitos subplots que parecem conduzir a lugar nenhum, pode incomodar quem busca no longa uma narrativa mais conservadora.
Anderson enriquece seu roteiro com um extraordinário trabalho de contextualização histórica, nos fazendo mergulhar na Grande Los Angeles (cidade de Boogie Nights e Magnólia, outros longas de sua autoria) dos anos 1970, por meio de orgânicos direção de arte e figurino; da fotografia hiper-realista de cores saturadas; e da saborosa trilha sonora, recheada de canções icônicas do período (Nina Simone, The Doors, Sonny & Cher). É arrepiante, por exemplo, a cena em que vemos Gary correndo em meio a veículos num grande congestionamento ao som de “Life in Mars”, de David Bowie.
O filme é repleto de referências à Hollywood dos anos 1970: Bradley Cooper, em uma participação hilariante e histriônica, interpreta Jon Peters, à época namorado da atriz e cantora Barbra Streisand e produtor-executivo de grandes sucessos. Sean Penn, não menos engraçado, interpreta o astro Jack Holden, inspirado no ator William Holden, de Férias de Amor e Rede de Intrigas.
Corra, Alana, corra
Correr, aliás, é algo que os protagonistas de Licorice Pizza, Gary e Alana, fazem muito ao longo do filme, menos por pressa e mais por urgência, e arrebatamento. Movidos pelos impulsos da juventude, eles parecem disparar para não deixar escapar algo que nem mesmo eles sabem ao certo o que é. Talvez seja a paixão que fermenta entre eles, ou o medo de não conseguir vivê-la. São esses momentos de correria amorosa que impulsionam a narrativa.
Correr, aliás, é algo que os protagonistas de Licorice Pizza, Gary e Alana, fazem ao longo de todo o filme, menos por pressa e mais por urgência, ou arrebatamento.
Alana Haim traz a Alana, filha de uma família judia de classe média, uma intensidade que está em sua voz, no que ela diz, mas também nos seus olhos, na sua linguagem corporal e gestos. Ela incendeia a tela em uma atuação de estreia memorável, e bastante complexa: a personagem sofre vários tipos de abuso, mais ou menos sutis, ao longo da trama, mas segue um busca de afeto verdadeiro.
A atuação de Craig Hoffman, que lembra muito seu pai sem imitá-lo, como o protagonista Gary é o contraponto perfeito para Alana. Há algo de encantador na forma como ele consegue ser menino e homem, dependendo da hora, sobretudo em sua relação com ela.
É inevitável conectar Licorice Pizza com Boogie Nights, segundo e brilhante longa-metragem de Paul Thomas Anderson sobre os bastidores do cinema pornô dos anos 1970. Há, para além da conexão temporal, um diálogo estético e ético entre os dois filmes, que metalinguisticamente falam sobre o mundo do cinema, seu fascínio e suas zonas de sombra.
Um dos mais brilhantes cineastas contemporâneos, PTA segue construindo uma filmografia marcada pela originalidade, pela ousadia formal e por sua humanidade, nem sempre fácil de digerir. Licorice Pizza é, sem dúvida, um deleite, mas está muito longe de ser escapista.
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