Último romance publicado por Clarice Lispector, em 1977, ano da morte da escritora, A Hora da Estrela é hoje um clássico consumado da literatura brasileira. E a protagonista, Macabéa, migrante alagoana pobre que vive marginalizada no Rio de Janeiro, tornou-se, ao longo dos 45 anos de existência da obra, uma de suas personagens femininas mais icônicas, por sua dimensão ao mesmo tempo patética e trágica.
Em 1985, a cineasta paulista Suzana Amaral adaptou o livro, em seu longa-metragem de estreia, trazendo a história para São Paulo. Mas essa não foi a única alteração significativa: o roteiro, assinado pela diretora, em parceria com Alfredo Oroz, limando a figura do narrador, o escritor Rodrigo S. M., eliminando esse importante elemento metalinguístico. Ainda assim, o filme retém a potência de sua fonte original e também graças à extraordinária interpretação de Marcélia Cartaxo, vencedora do Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim, é hoje um marco do cinema nacional.
No último fim de semana, fechando o Festival de Curitiba, foi apresentada no palco do Guairão, uma nova versão do romance de Clarice, agora sob a forma do musical A Hora da Estrela ou o Canto de Macabéa, em uma ousada adaptação escrita e dirigida por André Paes Leme, que conta com 32 canções inéditas criadas pelo compositor paraibano Chico César. Os versos foram extraídos do livro.
O papel de Macabéa coube à atriz e cantora baiana Laila Garin, que ganhou a atenção nacional quando foi escolhida para protagonizar Elis, A Musical (2013), espetáculo no qual interpretou a cantora Elis Regina. Em A Hora da Estrela ou o Canto de Macabéa, ela vive, além da protagonista, outra personagem, a Atriz, que desempenha o papel que nas páginas do romance é do escritor Rodrigo. Além de um olhar feminino, essa narradora dá à peça um tom mais compassivo, porque se afeiçoa por Macabéa, uma mulher invisibilizada por sua condição de marginal e pede licença para existir. Não reage e acredita não ter direito a coisa alguma. Ela é personificação da exclusão.
Por conta do som um tanto abafado no Guairão, na primeira apresentação da peça em Curitiba, sábado passado, nem sempre era possível compreender com clareza as letras das músicas.
Garin, dona de uma voz poderosíssima quanto canta, se sai muito bem ao se apequenar para dar vida à fragilidade de Macabéa, que vive, desde menina, em Alagoas, todo tipo de humilhações. No Rio, elas seguem se multiplicando no quarto de pensão que compartilha com outras moças e no escritório onde trabalha. Ela é sempre lembrada de sua inadequação, seja pela colega Glória (Claudia Ventura), seja pelo namorado, o cruel Olímpico de Jesus (Cláudio Gabriel).
Embora trate-se de um musical, em A Hora da Estrela ou o Canto de Macabéa, as canções de Chico César não substituem os diálogos – quando são interpretadas, os atores quase sempre se voltam para o público, como em um show, e não uns para os outros, contracenando. Por conta do som um tanto abafado no Guairão, na primeira apresentação da peça em Curitiba, sábado passado, nem sempre era possível compreender com clareza as letras das músicas.
Essa dificuldade prejudicou um tanto a integração entre as canções e o excelente texto do espetáculo, extraído quase na íntegra do romance de Clarice. As músicas, em vez de potencializar a trama, pelo menos para mim, tiravam em alguns momentos a força da narrativa. Elas vão do samba ao xote, passando pelo maracatu e pelo rock, e são boas. Algumas são muito belas, porém poderiam estar mais organicamente integradas à peça, que tem ótima cenografia, construída com cadeiras e mesas, e excelente iluminação.
Cantando ou não, Laila Garin, completamente em sintonia com o maravilhoso texto de Clarice, brilha em cena, acompanhada de competentes colegas de elenco e músicos. Ela demonstra compreender a alma singela, ingênua e triste de Macabéa. Fez por merecer a ovação recebida ao término de espetáculo, quando Chico César subiu ao palco, para, à capella, os dois fazerem um dueto de uma das canções da peça, “Vermelho Esperança”, cujos versos assim dizem: “Da lama nasce uma flor/Vai ser a minha vingança/Vermelho, cor do amor/Eu sou vermelho esperança”. A plateia, que compreendeu a mensagem, foi ao delírio.
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