O diretor Miguel Gomes é um dos grandes nomes do cinema português contemporâneo. Talvez porque consiga traduzir em seus filmes um traço muito forte na identidade atual do país ibérico em vários sentidos: a tensa relação entre tradição e modernidade.
Com um pé lá e outra cá, na tradição e na contradição, os filmes de Gomes têm o frescor da contemporaneidade, porém trazem em sua essência muito da alma lusitana, e da melancolia, de poetas como Camões, Fernando Pessoa e Florbela Espanca, do escritor José Saramago, da cantora Amália Rodrigues e do cineasta Manoel de Oliveira. Mas também da ressaca da decolonialidade, de um país que ainda ajusta contas com seu passado colonialista.
Como em seus longas-metragens mais conhecidos, Tabu, Aquele Querido Mês de Agosto e As Mil e Uma Noites, Gomes, no seu novo trabalho, Diários de Otsoga, exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, manipula o tempo narrativo. Os diários, e por conseguinte o próprio filme, é regressivo, começando no dia 22 e terminando no início de agosto.
Vale lembrar, daí, que Otsoga não é um lugar perdido em Portugal, mas o mês ao longo do qual transcorre a ação do filme, escrito de trás para frente. É uma pista de origem, por assim dizer.
Gomes, desta feita, não assina sozinho o longa. A documentarista Maureen Fazendeiro, sua companheira, é também diretora. Em um projeto cuja estrutura está tão fortemente ligada à forma narrativa, a corroteirista Mariana Ricardo também pode ser listada como autora, embora o enredo tenha como sua primeira fonte uma obra do escritor italiano Cesare Pavese.
O mundo às avessas ao qual assistimos na tela em Diários de Otsoga a todos parecerá bastante familiar. É o da Covid-19, na qual o isolamento surge como recurso para a proteção como o mal. Aqui faz sentido que lembremos que o verbo isolar está ligado etimologicamente ao substantivo ilha, em sua origem latina.
Em um híbrido de ficção e documentário, três jovens, Crista (Alfaiate), Carloto (Cotta) e João (Nunes Monteiro), que são ao mesmo tempo atores e personagens, estão isolados no que parece ser um sítio, próximo ao litoral. Eles têm um projeto comum: a montagem de um borboletário.
Como a cronologia está invertida, vemos a primeira borboleta surgir, um acontecimento potencialmente importante, simbólico, pois representa a possibilidade de esperança em circunstâncias extremas, uma recompensa. Afinal, borboletas, a despeito de serem vulneráveis, efêmeras, voam leves e são signo de liberdade.
Como a cronologia está invertida, vemos a primeira borboleta surgir, um acontecimento potencialmente importante, simbólico, pois representa a possibilidade de esperança em circunstâncias extremas.
Como essa imagem nos é entregue logo no início do filme, de certa forma a ideia de um desfecho redentor se esvazia. O que ganha importância é o caminho percorrido por esses personagens da vida real até esse momento.
Aí reside um certo desassossego no espectador. Os confinados, os três muito jovens, brancos, privilegiados, parecem mergulhados no ócio, em uma rotina sem muito rumo ou objetivo, a não ser a construção do borboletário.
Vez ou outra, surgem empregados para limpar a piscina, cozinhar, consertar um trator, como se representassem uma intervenção de realidade, de pragmatismo, nessa bolha escapista onde se julgam estar protegidos de uma ameaça externa.
Por vezes, a equipe de produção – diretores, roteirista, fotógrafo e outros – entram em cena para explicar o filme aos atores, que não sabem que rumo tomar, o que fazer, numa metáfora desse Portugal de encruzilhadas e perplexidade, de vastos horizontes e pouca perspectiva.
O vazio dos gestos, a ausência de sentido no que eles fazem, nos irrita, porque conduz, aparentemente, a lugar algum. Engano. Esse “nada” ocioso está repleto de sentidos.
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