Todo estudante de Jornalismo que ingressou na faculdade depois de 1994 ouviu falar no caso da Escola Base. Ele se tornou uma espécie de paradigma máximo dos danos que podem ser causados quando um jornalista erra em seu trabalho. Ainda que este profissional – tal como, por exemplo, um médico – não tenha literalmente a existência de alguém em suas mãos, o fato é que ele pode destruir centenas de vidas apenas com a força do discurso.
Mas talvez o pior de tudo seja: ele pode fazer isso e seguir adiante. Afinal, as pautas nunca deixam de chegar e sempre haverá mais tragédias a serem relatadas. É bem fácil entender o dano jornalístico como “ossos do ofício”.
Mas nem sempre é assim. Por isso, pensaria que a premissa do documentário Escola Base: Um Repórter Enfrenta o Passado, da Globoplay, é quase inédita: o foco está no acerto de contas (não apenas com as vítimas, mas consigo mesmo) de um repórter que convive há 28 anos com as consequências de um erro. E quem exerce a penitência aqui é Valmir Salaro, um dos mais experientes repórteres investigativos do Brasil.
Vale lembrar, contudo, que este erro não foi individual, mas sistêmico. Ou seja, foi o próprio funcionamento do sistema jornalístico, articulado por suas múltiplas peças, que ocasionou que as vidas de seis pessoas e de todos os seus familiares fossem esmagadas de forma irreversível.
O caso da Escola Base
Mesmo os mais velhos, que passaram décadas ouvindo sobre o caso da Escola Base, podem não saber detalhes do que aconteceu. Em resumo, a história foi a seguinte: duas mães foram na polícia denunciar uma suspeita de abuso sexual dentro de uma escolinha infantil particular em São Paulo. A partir dos relatos das crianças, abriu-se uma investigação acerca do que seria uma trama complexa de violência contra menores, envolvendo estupros e filmagens dos alunos em motéis.
Quando o inquérito chegou até os jornalistas, parecia haver ali um enredo capaz de render meses de matérias sensacionalistas (pense, por exemplo, o quanto este tipo de conteúdo continua sendo exaustivamente explorado até hoje nos programas policialescos). Tendo em mãos uma conclusão apressada da polícia, a imprensa passou a noticiar. O primeiro a levar isso a público foi o repórter Valmir Salaro, da Globo. Ou seja: ele teve a oportunidade (e a responsabilidade) de noticiar o caso na principal emissora de TV do país.
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Depois disso, como conta um dos entrevistados no documentário, foi como acender um fio de pólvora que nunca mais parou de explodir. Praticamente todos os grandes veículos de comunicação começaram a explorar o caso incessantemente. Foram raríssimas as exceções de quem imaginou que haveria incongruências na história. A maior parte dos jornais e programas soltou a matéria (na lógica do “pode ser verdade”) para surfar na onda. As consequências de possíveis equívocos seriam refletidas apenas depois.
E se os crimes fossem reais? Isso justificaria que o jornalismo suscitasse esta devassa na vida das pessoas?
Contudo, os impactos foram imediatos. A escola foi destruída, assim como as casas e as vidas das pessoas diretamente envolvidas: os donos da escola, Maria Aparecida e Icushiro Shimada, a outra sócia, Paula Alvarenga, e seu marido, Maurício Alvarenga, que dirigia uma Kombi que transportava as crianças. Um casal de pais também foi denunciado porque os abusos supostamente ocorreriam no apartamento deles.
O que Escola Base faz é o que quase nunca acontece no jornalismo: recupera-se em detalhes todo o mal que a notícia causou. Todos perderam tudo o que tinham, o que ia muito além dos bens materiais. Ricardo, filho do casal Shimada, teve que conviver com a raiva e a vergonha do que tinha ocorrido com os pais, que morreram alguns anos depois. As filhas de Paula tiveram que conviver com o divórcio dos pais e tiveram sua infância roubada. Maurício teve que ouvir o pai negando que ele fosse seu filho.
Mas penso que há uma questão subjacente trazida nesta história, e que poderia ser mais discutida, inclusive no próprio documentário. E se os crimes fossem reais? Isso justificaria que o jornalismo suscitasse esta devassa na vida das pessoas? Cabe a este ofício o papel de criar algum tipo de “justiçamento” sobre as tragédias brasileiras?
A humildade de um repórter
A grande riqueza de Escola Base: Um Repórter Enfrenta o Passado está, claro, no foco colocado sobre o repórter Valmir Salaro. De alguma forma, ele carrega o peso de um erro coletivo nas suas costas. Há uma certa prepotência nisso, penso eu, mas pouco importa: talvez raríssimas vezes tenhamos visto um jornalista se colocar na posição humilde com que ele aparece neste documentário.
É quase como se Escola Base servisse para ele como uma grande sessão de análise, em que tenta prestar contas consigo mesmo com as consequências do que não pode resolver. Não há como devolver as vidas que estas vítimas perderam, pois elas estão eternamente marcadas pelo que foi feito. Tendo em isto em mente, há como seguir em frente?
Fica claro, pelo documentário, que Valmir Salaro quer expurgar também a dor que o episódio trouxe para ele. Em entrevistas, ele disse que dedicou parte de sua carreira a falar sempre sobre o caso, no intuito de colocar seu “crime” à luz, ao invés de deixá-lo enterrado.
Mas nem sempre isto lhe trouxe alguma redenção. Isto fica claro quando Salaro mostra o livro recebido do casal Shimada, em que eles contam sua versão da história. Ele assume nunca ter lido o livro nem ter lido a carta que Aparecida Shimada escreveu a ele, como dedicatória.
O documentário vai se direcionando, de forma muito emocionante, a este “confronto final”: quando Valmir Salaro estará de frente com Paula Alvarenga e Ricardo Shimada para ouvir o quanto eles foram impactados pelo erro da imprensa. Isto ocorre, de maneira muito perspicaz, na sede já desativada da “Globo velha”, como menciona Salaro, em um prédio localizado na zona central de São Paulo.
O resultado deste encontro é catártico. Endosso o coro dos tantos que mencionam que este documentário deveria ser transmitido em faculdades de Jornalismo por todo o país. Mas acrescento: ele deveria ser uma obra obrigatória para muito mais gente, pelo retrato que faz, de maneira absolutamente inspirada e comovente, sobre as possibilidades de perdão e redenção a todos que sofreram ou causaram dores incalculáveis a alguém.
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