O filme Rio Doce, longa-metragem de estreia do diretor Fellipe Fernandes (que atuou como assistente de direção em obras fundamentais como Bacurau e Aquarius), é uma investigação aprofundada em torno de um personagem. Tiago (vivido pelo rapper pernambucano Okado do Canal) é um homem prestes a completar 28 anos, que segue a mesma trilha de tantos jovens: trabalha em um emprego descartável e é um pai um tanto ausente de uma menina de quatro anos. Não tem dinheiro no banco e contraiu algumas dívidas.
Logo entendemos que, como tantos brasileiros, Tiago foi criado só pela mãe e sofre por uma ausência de uma referência de masculinidade – o mais próximo disso talvez seja o padrasto. Ele carrega em si um peso e uma tristeza que se explicitam com maestria na performance contida, mas muito expressiva, de Okado do Canal (que além de ator e rapper, é também arte-educador e líder comunitário).
As coisas começam a mudar quando ele recebe em seu trabalho a visita de uma mulher que não conhece, mas que quer falar com ele de maneira privada. Helena, que é uma moça branca (vivida pela atriz Tássia Cavalcanti), o procura por ter encontrado uma carta no meio das coisas do seu pai, que morreu. Na carta, descobre que Tiago é seu irmão.
Ela então o convida para um almoço de família no domingo, na casa de classe média alta que é muito melhor que a dele, localizada no Rio Doce, o bairro mais popular de Olinda. Lá, além de Helena, Tiago descobre que há mais duas irmãs: Catarina (Amanda Gabriel), a mais velha, que já tem filhos, e Laura (Nash Laila), com poucos meses a menos que ele.
Este contato algo estranho começa a transformá-lo de alguma forma e passa a fazê-lo se deslocar para além dos limites do seu ambiente de normalidade, mas também é de muita passividade e falta de ambição.
‘Rio Doce’: um jovem que se transforma em homem
O que acompanhamos é um processo delicado em Tiago em busca de uma maturidade que parece vir aos poucos, à medida em que ele se encontra com seu passado e pode tomar as rédeas do presente.
Grande vencedor do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba de 2021, Rio Doce é uma obra tocante de uma maneira especial, uma vez que não se trata de um filme de grandes arroubos emotivos nem de grandes mudanças estruturais do personagem central.
O que acompanhamos é um processo delicado que se desenrola em Tiago em busca de uma maturidade que parece vir aos poucos, à medida em que ele se encontra com seu passado e pode tomar as rédeas do presente. Quando se encontra com a família do “novo pai”, que se mostra aberta e acolhedora, fica visível que há um constrangimento algo silencioso no ar.
Ele fica expresso de maneira sutil especialmente nas reações de Catarina, a irmã mais velha – que, embora trate a todos por “amor”, revela o racismo estrutural presente naquela cena familiar. Embora seja ela mesma casada com um homem negro, Catarina se escandaliza ao notar que a babá dos seus filhos é do mesmo bairro do seu novo irmão, e que inclusive as famílias se conhecem.
Ainda que todos ali tentam expressar a ideia do “somos todos iguais”, o desconforto é visível (e fica mais nítido quando um amigo gay das irmãs chega chorando e é abraçado por elas, enquanto o irmão fica de escanteio). Apenas Laura, a irmã mais nova, parece expressar de forma emocional o incômodo por uma vida que se encerra e outra que começa quando ela passa a ter quase um “gêmeo”, com sua mesma idade. Quando eles se conectam de maneira inesperada, em uma festa, fica claro que Tiago não é exatamente bem-vindo na família.
Com uma direção de fotografia intimista, que explora num efeito granulado da imagem, Rio Doce é um filme que parece explorar muito do silêncio e da vida interior do personagem central, que é um jovem sujeito que, ao descobrir vagamente a identidade do pai, parece aos poucos também descobrir-se como homem. A belíssima cena final, simples e poética, faz com que a jornada de Tiago soe absolutamente afetuosa ao coração do espectador.
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