O dia era 21 de dezembro de 1951. Nesta data, a TV Tupi apresentava aos seus espectadores uma novidade: um tipo de programa envolvente, apresentado em capítulos, e que cada episódio “enganchava” o público para retornar no dia seguinte para ver o que tinha acontecido. Ia ao ar a estreia da telenovela Sua vida me pertence, a primeira obra deste gênero produzida no Brasil.
A novela durou apenas 25 capítulos – tempo que, atualmente, parece inimaginável para desenvolver uma trama complexa, com múltiplos personagens e tramas paralelas. Mas o que provavelmente não se imaginava é que as telenovelas se tornariam um formato com características muito particulares no país, e que reinaria como uma das principais opções de entretenimento dos brasileiros – e que, inclusive, se tornaria um produto exportação.
Gostando-se ou não, a verdade é que as novelas povoam o imaginário da cultura brasileira. Não é preciso ter assistido às novelas para conhecer Odete Roitmann, Sassá Mutema, Juma Marruá, Carminha, Sinhozinho Malta e Viúva Porcina, dentre tantos outros personagens criados pelos folhetins. No entanto, esta reportagem se propõe a investigar o que talvez seja o mais impressionante: a constatação de que, 70 anos depois – mesmo com várias outras alternativas de narrativas ficcionais para consumir nas plataformas de streaming, como séries que, a principio, parecem mais sofisticadas – nós continuamos gostando de ver novelas.
E por que isso acontece? Para tentar entender esse mistério, a Escotilha foi atrás de especialistas. Conversamos com Nilson Xavier, crítico de televisão responsável pelo site Teledramaturgia; Duh Secco, colunista de novelas no site RD1; e Licia Manzo, autora de novelas, que escreveu Um lugar ao sol, atual novela das 21h da Globo.
A permanência de uma septuagenária
Há 70 anos, quando a primeira novela da Tupi foi ao ar, o momento era outro. A TV (surgida em 18 de setembro de 1950) ainda engatinhava. As famílias se entretinham com o rádio, ouvindo radionovelas – que já eram descendentes dos chamados folhetins, as histórias de ficção publicadas aos pedaços nos jornais para fazer o leitor comprar novamente no dia seguinte. Por isso, quando as primeiras novelas foram ao ar, com o apelo do visual, era até esperado que agradassem os espectadores ainda sem muitas outras formas de se entreter em casa e fora dela
Não é preciso ter assistido às novelas para conhecer Odete Roitmann, Sassá Mutema, Juma Marruá, Carminha, Sinhozinho Malta e Viúva Porcina, dentre tantos outros personagens criados pelos folhetins.
Ainda que as novelas certamente tenham sofrido impactos em sua audiência nos últimos anos, é inegável que elas continuam o principal produto de entretenimento da TV aberta. Recentemente, algumas notícias, como a da contratação de Silvio de Abreu pela HBO Max para assinar novos projetos de ficção, sugerem que a telenovela (bem como formatos derivados dela) deve estender seu alcance também ao streaming.
Por isso, uma das primeiras questões que tentamos averiguar é uma explicação para a permanência do gênero no gosto do espectador, mesmo que ele tenha hoje incontáveis opções de séries – que, ao menos em teoria, apresentam a ele narrativas e tramas mais desafiadoras e, por isso, mais divertidas.
Nilson Xavier acredita que o sucesso das novelas no Brasil tem a ver com representatividade. “Foi essa identificação – de nossa cultura, nossa sociedade, nosso povo, nossos problemas e nossas paisagens – que fez o público valorizar e prestigiar essa forma de entretenimento. Se a telenovela tivesse permanecido arraigada ao formato latino, com certeza sua trajetória teria sido outra”, opina.
A autora Licia Manzo observa uma questão de uma participação coletiva dentro da mesma história. “Penso que a novela traz um aspecto de comunhão: todos assistindo a um mesmo conteúdo, ao mesmo tempo, e podendo comentar no dia seguinte. É uma tradição no país, algo que faz parte da nossa formação”.
Já Duh Secco destaca que a tradição das novelas tem a ver com uma ligação emocional que se transmitiu por gerações, a ponto de determinar questões de agenda do brasileiro, como hábito de sair ou dormir depois da novela das oito. Hoje essa tradição se transfere para outras plataformas. “O Globoplay surfa neste apego e não só com conteúdo atual. Outros serviços de streaming estão ensaiando investimentos no gênero, o que deixa todo noveleiro em polvorosa”, afirma.
Para ele, é uma ilusão imaginar uma derrocada do gênero. “A novela deve se perpetuar justamente por conta desta ligação tão íntima, desenvolvida ao longo destes 70 anos. Por mais que um enredo desenvolvido em poucos episódios, como nas séries, pareça atrativo diante de rotinas cada vez mais atribuladas, o hábito e o prazer de acompanhar a narrativa diluída em muitos capítulos deve permanecer por muito tempo, especialmente por esta penetração no nosso cotidiano”.
Temos novidades nas novelas?
Questionados sobre as evoluções no gênero nestes 70 anos, os especialistas notam que as novelas sempre se renovaram – o que não significa que tenham se transmutado em outra coisa. Xavier pontua que a grande mudança na telenovela brasileira ocorreu em 1968, com Beto Rockfeller, na TV Tupi, o primeiro folhetim a incorporar a brasilidade em sua trama. “De lá para cá, a telenovela industrializou-se, aperfeiçoou-se, popularizou-se ainda mais, mas continua a mesma, no que se refere a formato”, explica.
Um Lugar ao Sol, por exemplo, tem gerado bastante repercussão por conta da abordagem da sexualidade da personagem de Andrea Beltrão – especialmente por mostrar uma mulher na casa dos 50 anos em uma cena de masturbação. Isso significa que a novela está quebrando tabus? Não necessariamente.
A própria autora do folhetim, Licia Manzo, posiciona-se em relação a esse assunto. “Após a exibição da sequência em que a personagem de Rebeca se masturba, li na internet que Janete Clair escreveu uma cena com o mesmo conteúdo nos anos 80, protagonizada por Débora Duarte. Como se vê, não deixa de ser uma repetição, na medida em que pautas como sexualidade feminina, etarismo, permanecem atuais”.
Em relação ao formato, Duh Secco ressalta que a “redundância” do gênero é fundamental para que o espectador continue engajado. “Além deste apego emocional, o fato de ser um produto ‘redundante’, acredito, facilita. Se você perde um capítulo, pode voltar no seguinte porque ali, entre os diálogos e ações dos personagens, vai conseguir se situar”.
Se temos tantas séries à nossa disposição, com histórias mais curtas e mais complexas, que podem ser assistidas no momento que quisermos, então por que continuamos vendo novelas? Os especialistas acreditam que haja aqui uma falsa dicotomia. “A busca pela fantasia, pela fuga da realidade, é o que leva o público a consumir histórias no audiovisual (novelas, séries, minisséries, filmes). Discordo que o espectador prefira assistir a uma novela em vez de uma série. Não se trata disso. Eu consumo os dois formatos! São formatos/produtos diferentes, por mais que um beba da fonte do outro. E é possível consumir ambos sem prejuízo ou demérito ao outro”, pondera Nilson Xavier.
Outra questão importante em relação às novelas tem a ver com o seu tamanho. Com episódios de cerca de uma hora, exibidos de segunda a sábado, muitas novelas tiveram sua história desdobrada em mais de 200 capítulos. Se levarmos em consideração que uma temporada de série costuma ter cerca de 10 episódios, é uma extensão gigantesca.
As mudanças no tempo de duração impactam no ritmo das novelas, segundo Duh Secco – e podem ser uma forma de enfrentar a concorrência com as séries. Nesse sentido, Um lugar ao sol é uma novela com uma inovação: ela deve durar 100 capítulos. Lícia Manzo se diz confortável com essa extensão. “100 capítulos é metragem mais que suficiente para se contar uma história. Se este será ou não o futuro das novelas, o tempo dirá”.
A novela do coração
Dá para dizer que o Brasil é um celeiro de telenovelas. São centenas de folhetins que já foram produzidos em emissoras diversas, como Globo, SBT (talvez a maior expert em novelas infantis), Manchete (responsável por clássicos como Pantanal), entre várias outras. Para encerrar, então, perguntamos aos especialistas uma questão de fundo emocional: qual a sua novela do coração, e por quê?
Nilson Xavier menciona Vale Tudo, escrita por Gilberto Braga em 1988, como uma obra que tem todos os ingredientes de boa novela: ótimos texto, direção, elenco e produção, trama bem conduzida, história cativante, personagens carismáticos. Mas menciona que o principal motivo dessa escolha é a atemporalidade de sua trama. “Apesar das discrepâncias tecnológicas e narrativas de sua época com a atualidade, Vale Tudo consegue se manter atual e dialogar com o Brasil de hoje. Reconhecemos e identificamos nas tramas e personagens o que vemos na nossa sociedade de sempre. Raras novelas conseguem esse feito”, acredita.
Duh Secco também destaca Vale Tudo como “a melhor novela de todos os tempos”, e dedica um sentimento especial para A Viagem, de Ivani Ribeiro, que é um remake da Globo feito em 1994 da novela escrita para a Tupi em 1975. Mas sua favorita da vida é Por Amor, de 1997, escrita por Manoel Carlos. “Sou fascinado pelo ponto de partida, a mãe que dá o bebê para a filha incapaz de gerar uma criança, um ato de amor e também de egoísmo. Adoro o repertório da vilã Branca (Susana Vieira), fico encantado desde sempre com o amor e a união de Milena (Carolina Ferraz) e Nando (Eduardo Moscovis). E acredito que a realização – cabelos, figurinos, cenários, direção – não envelheceu… Se voltar daqui 10 anos, fará sucesso outra vez”.
Por fim, Licia Manzo escolhe sua novela do coração: Água Viva, criação de Gilberto Braga, exibida na Globo em 1980. “Porque não há, na novela, apelos como violência, sexismo, humor barato. Apenas personagens de carne e osso, cheias de qualidades, defeitos e humanidade. Nada em Água Viva é postiço”.
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