A paranaense Heloisa Passos tem uma vasta e consolidada carreira com direção de fotografia: desde Todos os corações do mundo (1994), de Murilo Sales, até Viajo porque preciso volto porque te amo (2006). Sua carreira enquanto diretora também é memorável, desde o curta-metragem Viva volta (2005), que conta com Maria Bethânia, até a série televisiva Caminhos (2012). Como documentarista, Passos nos apresenta mais uma obra, que teve exibição na mostra competitiva do 50º Festival de Brasília deste ano e estreou em Curitiba no Festival Internacional de Cinema da Bienal de Curitiba (FICBIC).
Construindo Pontes (2017) é um documentário que iniciou como uma proposta, mas acabou indo à outra direção, algo bastante comum no universo do gênero. Ao narrar a trajetória de seu pai enquanto um proeminente engenheiro civil paranaense na época do “milagre brasileiro”, época assim conhecida de período de desenvolvimentismo durante o regime militar no Brasil, Heloisa acaba tomando novos rumos. Em vários momentos, enquanto os dois personagens (o pai, Álvaro Passos, e ela mesma) se colocam diante de uma mesa com mapas para discutir sobre as rodovias que ele projetava naquela época, surgiam questões de maior relevância no relacionamento entre pai e filha que seriam mais imponentes do que a questão entrevistado e realizadora.
É assim que o documentário percorre a sua própria construção, e, assim, acaba revelando as opiniões dos dois sobre diversos temas. Enquanto o pai acreditava fidedignamente que o período militar foi essencial para a construção de um sentimento de nação ao Brasil, a filha já contrapunha seus argumentos dizendo que era inadmissível aceitar que alguma coisa de bom poderia ter vindo daquele momento de tortura e repressão ideológica. Em época de crise política no Brasil, que culminou na saída da ex-presidenta Dilma Rousseff do poder executivo em 2016, quando o longa foi produzido, a situação ia ainda mais longe: o pai chamava de “impeachment” e a filha, “golpe”.
Construindo Pontes expõe com sensibilidade as lacunas do relacionamento entre o pai e a filha.
Em meio a discussões acaloradas sobre os temas, logo se via uma divergência entre o pai e a filha que caracterizava a relação entre os dois. Se, por um lado, todas as discussões tinham um viés ideológico, por outro lado Heloisa vai nos mostrando que o buraco era muito mais embaixo. Enquanto reflete sobre isso na voz em off do documentário, a realizadora revela que muito daquele cenário entre os dois tinha origem longe, quando ela ainda era jovem, e que criou feridas não cicatrizadas, tanto pelo pai quanto pela filha, que acabavam se materializando no misto de silêncio e desavenças.
Um outro ponto de extrema importância na construção do longa é o uso de simbologias, como a questão da água enquanto potência. Ao usar a referência do Salto de Sete Quedas do rio Paraná, que até o fim da sua existência foi a maior e mais potente cachoeira do mundo para então dar lugar à construção da usina hidrelétrica de Itaipu, Heloisa compara com o relacionamento que tinha com seu pai. Enquanto elemento natural, a água é uma potência naturalmente bastante forte; porém, quando contida, pode deixar submersos mundos que deixam de existir – estes, repletos de emoções, sensibilidade, mágoas.
Desta forma, a (des)sincronia entre o pai e a filha vai ganhando novas matizes e culminam não apenas em um simples embate político das situações que estavam acontecendo naquele momento no país, das opiniões com relação a temas espinhosos como o impeachment ou a legitimidade da Polícia Federal na operação Lava-Jato, mas também numa tentativa de conexão entre pai e filha, que, embora de maneira fraca e torta, os levou a produzir um longa-metragem em busca de uma catarse.
Heloisa demonstra, com uma sensibilidade tremenda, que é possível fazer um documentário de maneira sincera e eloquente, mas sem ao mesmo tempo perder o passo daquilo que é mais importante: a representação da verdade, ali, nua e crua, nas discussões em jantar em família, no silêncio em viagens de carros, em situações tão corriqueiras que podem representar muito. E, assim, levantar muros ou construir pontes.
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