A memória é sempre um recurso ingrato para quem a carrega. Uma vez que ela não pode jamais ser comparada aos fatos, ela sempre ressurge em pedacinhos, em fotos, em palavras que são lembradas. Nos anos 1980 e 90, boa parte das memórias das pessoas foi capturada por meio da onipresença das câmeras VHS que – diferente do que acontece hoje com os celulares – pareciam estar ligadas o tempo todo, capturando microinterações e não poses performadas.
Aftersun, filme de estreia da canadense Charlotte Wells, é uma obra que materializa a memória de uma filha sobre um pai que não está mais lá (como sabemos disso é algo que se revela de maneira muito sutil e suave durante a trama). Acompanhamos as férias de um pai, Calum (vivido de maneira brilhante pelo ator Paul Mescal), de 31 anos, com sua filha Sophie (Frankie Coiro), de 11 anos. Eles passam alguns dias em um hotel na Turquia.
A grandiosidade de Aftersun está em justamente no fato de que ele nos comove enquanto um filme “pequeno”. Não se trata de uma obra sobre grandes acontecimentos, sejam emoções ou tragédias.
Não sabemos muito sobre eles, mas entendemos, por meio dos diálogos, que os pais de Sophie não estão mais juntos – aqueles dias, portanto, são exclusivos dos dois. E por meio de uma estratégia de mistura presente e passado, sabemos que Calum já não vive mais. Estamos, na verdade, tendo a oportunidade de visitar as memórias ternas dessa filha, que tenta capturar pistas sobre um pai que ela não conhece mais.
Essas pistas são trabalhadas ao longo de Aftersun de modos muito poéticos, que passam longe de arroubos de emoção. Nunca nos é dito com clareza por que Calum não está mais lá. Sophie (a personagem e sua história são parcialmente inspirados na própria vida de Charlotte Wells e seu pai) encara aos poucos pequenas pecinhas de um quebra-cabeça que, postas em perspectiva, talvez possam revelar a ela o que de fato estava ocorrendo ali. Mas talvez não.
E essa história é reconstituída de forma belíssima, pelas gravações de baixa qualidade da câmera VHS que os dois carregaram para as férias, que vão guardando conversas tão banais quanto belas – que são, afinal, aquelas que restam para sempre. Como uma música que o pai sempre cantava e uma brincadeira boba que ambos faziam.
‘Aftersun’: as memórias que restam
A grandiosidade de Aftersun está em justamente no fato de que ele nos comove enquanto um filme “pequeno”. Não se trata de uma obra sobre grandes acontecimentos, sejam emoções ou tragédias. É o contrário: estamos diante de uma obra sobre as migalhas do cotidiano que restam quando se vive o luto da perda de um pai.
A filha, em plena pré-adolescência, acompanha o pai nesta viagem, em que fica muito claro que a relação entre os dois é boa e leve. A menina está prestes a descobrir um novo mundo, com novas pessoas e passos a dar – como o primeiro beijo. Mas, além do pai, há um homem, cuja filha não enxergou o sofrimento (estaria Sophie, já adulta, procurando o que ela deixou de ver?).
Charlotte Wells é capaz de comover ao nos envolver nessa jornada na qual observamos uma relação amorosa que se desenrola, na mesma medida em que Calum está acometido pela dor. Isto nos é entregue de maneira belíssima – como quando Sophie pergunta ao pai por que ele ainda diz “eu te amo” para sua mãe, sendo que eles não são mais casados, ou nas cenas em que Calum é enquadrado de costas enquanto chora.
Mas há outros signos que pulam à tela, pedindo para serem capturados. As memórias da criança se misturam aos devaneios de uma jovem adulta, que, num cenário que remete a uma boate com luzes estroboscópicas, dança. Lá, ela é criança, é adulta, e às vezes dança com o pai que nunca envelheceu.
E, por fim, mais um belo recurso que me emocionou profundamente: o uso de uma trilha sonora que marca as situações vividas em silêncio por Calum. São as músicas que trazem uma noção temporal de quando ocorre esta história, por volta da virada dos anos 1990 para os anos 2000.
É difícil não chorar com a complexa alegria que atinge pai e filha ao som de Under Pressure, parceria de David Bowie com Queen, ou Tender, do Blur (cuja letra diz: “Tender is the day the demons go away/ Lord, I need to find someone who can heal my mind”).
Em uma época em que o cinema se regozija em efeitos e superproduções, é sempre um privilégio poder ter o coração tocado por um filme tão tristemente encantador como Aftersun.
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