Em um futuro não muito distante, uma pequena localidade do agreste nordestino desaparece do mapa. Já vinha há algum tempo enfrentando problemas de abastecimento de água, torna-se cenário de assassinatos brutais e, para completar, um drone disfarçado de disco voador começa a sobrevoar a região. Alguma coisa está muito fora de ordem em Bacurau, vilarejo que dá nome ao longa-metragem de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, filme vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2019.
Ao mesmo tempo universal e profundamente regional, Bacurau tem elementos de western e ficção científica, capazes de agradar os apreciadores desses gêneros populares e consagrados do cinema hollywoodiano, sem, contudo, abrir mão de referências da cultura nordestina, como o repente e o cangaço, e do próprio cinema brasileiro, dialogando com obras de Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol, presente nos grandes planos abertos) e Roberto Santos (A Hora e a Vez de Augusto Matraga, do qual “empresta” um tema musical de Geraldo Vandré).
Acima de tudo, o filme, também premiado nos festivais de Lima e Munique e capa da edição deste mês da revista francesa Cahiers de Cinéma, é uma super potente alegoria política que, mesmo que não tenha sido essa a intenção dos autores, parece ter sido feita sob medida para falar do Brasil de hoje.
Se o roteiro de Mendonça Filho e Dornelles discute temas que ressoam mais do que nunca na sociedade brasileira em 2019, como abuso de poder, racismo, preconceito regional e fetiche pela violência, Bacurau, tenso da primeira à última sequência, não explora esses temas de forma leviana, como mero entretenimento, para deleite do espectador médio, que até vai gostar bastante de assisti-lo, mesmo sem captar seus subtextos, suas sutilezas.
Ao mesmo tempo universal e profundamente regional, Bacurau tem elementos de western e ficção científica, capazes de agradar os apreciadores desses gêneros populares.
A ambição aqui é bem maior: o longa conta uma arrebatadora história de resistência a tudo isso, na qual, por meio da união de esforços, da luta por uma identidade profundamente enraizada e compartilhada, os habitantes de Bacurau enfrentam a ameaça representada por forasteiros que os desprezam tanto como seres humanos quanto como cultura, e desejam não apenas oprimi-los, mas eliminá-los.
Com muitos personagens marcantes, todos com alguma razão de ser dentro do enredo, e sem protagonistas evidentes, Bacurau é um filme-coral: praticamente todos têm voz, e até mesmo os antagonistas, por mais aterrorizantes e cruéis que sejam, assim como Michael (Udo Kier), o líder alemão naturalizado americano dos invasores, eles também ganham subjetividade. Não são meramente maus.
Os habitantes de Bacurau tampouco são retratados como heróis virtuosos ou vítimas passivas. Entre os locais, muitos são memoráveis: entre eles, a médica Domingas (Sonia Braga, em grande desempenho), que oscila entre a severidade da razão e o delírio; o curandeiro Damiano (Carlos Francisco), que cultiva ervas e cria um psicotrópico capaz de empoderar a coragem de seu povo; e, sobretudo, Lunga (um Silvero Pereira extraordinário), ao mesmo tempo masculino e feminino, que encarna, assim como Pacote (Thomas Aquino), um bandido social, que, a despeito de seus pecados e crimes, também age em nome de causas defensáveis. É, também, um herói.
Apesar de viverem no interior, em uma localidade remota, os habitantes de Bacurau, como responde um menino do vilarejo a um dos forasteiros invasores, são “gente”. E também são seres tecnológicos (todos têm celular), informados e conscientes de seu lugar no mundo, de sua história – eles têm um museu que a guarda. Talvez até por isso precisem ser tirados do mapa – eles sabem que existem e isso é muito perigoso, sobretudo na realidade brasileira dos tempos atuais.
Mendonça, que foi crítico de cinema antes de tornar-se diretor, tem vasta cultura cinematográfica, e isso se torna evidente na forma como costura referências, que vão de Howard Hawks e seu cinema (não apenas no western) que valoriza o coletivo versus individualismo, a John Carpenter (presente na trilha sonora), mestre do terror e da ficção científica, e Sam Peckinpah, cuja obra discute a violência tanto como tema quanto como possibilidade estética. Porém, Bacurau não é pastiche. Está mais próximo da antropofagia modernista, em que a arte de tudo engole, regurgita e sintetiza, para devolver ao mundo uma obra viva, pulsante e urgente. Um filme imenso como o Brasil.
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