Nenhum filme brasileiro causou um impacto tão profundo nos primeiros anos do século 21 quanto Cidade de Deus. Lançado nos cinemas em agosto de 2002, há 20 anos, em poucas semanas o longa-metragem de Fernando Meirelles, codirigido por Katia Lund, bateu o recorde de público da chamada “retomada” do nosso cinema, iniciada em meados dos anos 1990. Mais de 3,5 milhões de pessoas viram o filme na tela grande.
Mais até do que o êxito de bilheteria – já superado por vários longas-metragens, desde então –, no entanto, o que tornou Cidade de Deus um fenômeno único foi sua tremenda repercussão social, cultural e política.
O filme conta a história de 30 anos de tráfico de drogas na Cidade de Deus, localizada na zona oeste do Rio de Janeiro. Retrata uma comunidade na qual a violência massacra o dia a dia das famílias e atravessa as relações sociais e familiares.
A trama tem como protagonista Buscapé (Alexandre Rodrigues), um jovem pobre, negro e sensível, que cresce em um universo de violência extrema. Apavorado pela possibilidade de se tornar um bandido, ele é “salvo” por seu talento como fotógrafo. É por meio de seu olhar atrás da câmera que ele vê busca compreender o dia a dia da favela em que vive.
A recepção de Cidade de Deus pela crítica foi dividida e acalorada. Criou-se quase um “Fla-Flu” em torno do caso. Para os entusiastas, era a primeira vez que se falava da violência na favela “a partir de dentro”, uma vez que o autor do livro que inspirou o filme, Paulo Lins, tinha sido morador da comunidade e se baseara em personagens e situações reais.
Além disso, a maior parte dos atores provinha da própria comunidade ou de outras semelhantes, graças a um trabalho de recrutamento e oficinas junto a grupos como o Nós do Morro. Revelou talentos, como Douglas Silva, Roberta Rodrigues, Seu Jorge, Alice Braga, Leandro Firmino da Hora e Thiago Martins, entre outros.
Assim, o filme romperia com a tendência de retratar a favela de modo paternalista ou populista, a partir do ponto de vista da classe média branca intelectualizada.
Mas a reação contrária foi igualmente apaixonada e veemente. Para a crítica e professora de Cinema Ivana Bentes, o filme se enquadrava no que ela chamou de “cosmética da fome”, ao glamourizar a miséria e enquadrar sua abordagem nos parâmetros do cinema de ação hollywoodiano.
Para a antropóloga Alba Zaluar (que servira de consultora para a escrita do romance de Lins), a proporção de negros e brancos na favela aparecia distorcida na tela, como se a Cidade de Deus fosse um gueto negro nos moldes dos norte-americanos.
Para a crítica e professora de Cinema Ivana Bentes, o filme se enquadrava no que ela chamou de “cosmética da fome”, ao glamourizar a miséria e enquadrar sua abordagem nos parâmetros do cinema de ação hollywoodiano.
O rapper e ativista MV Bill, que cresceu no bairro, acusou o filme, à época do lançamento, de trazer um estigma aos moradores do bairro, identificado como lugar de crime e gente violenta. Até as dificuldades de arranjar emprego teriam aumentado depois de Cidade de Deus.
Passados 20 anos, e assentada a poeira dos debates, o que ficou de Cidade de Deus? Qual foi seu efeito duradouro para o cinema, para a comunidade retratada, para o país?
Do ponto de vista cinematográfico, é inegável sua contribuição para a elevação da qualidade técnica, para o aprimoramento de uma dramaturgia realista e para o desenvolvimento, entre nós, de uma narrativa moderna de cinema de ação.
Não foi por acaso que o filme foi indicado ao Oscar em quatro categorias (direção, roteiro adaptado, fotografia e montagem) e abriu as portas de uma carreira internacional para Fernando Meirelles, que dirigiria filmes premiados, como O Jardineiro Fiel e Dois Papas.
Na esteira do sucesso de Cidade de Deus vieram uma série de tevê e outro filme, ambos chamados Cidade dos Homens, sem contar os inúmeros curtas, longas e documentários sobre violência na favela, como Tropa de Elite 1 e 2, influenciados direta ou indiretamente por ele.
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