Falar do cinema de Walter Hugo Khouri é, sem dúvida alguma, falar sobre a relação que este diretor do cinema brasileiro dos anos 1960 e 1970 tinha com os desejos e a vida urbana. Produzido pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz, conhecida pelo perfeccionismo de Alberto Cavalcanti, O Palácio dos Anjos (1970) não economiza numa estética que já havia sido consolidada pelo diretor desde Noite vazia (1964): closes extensos no olhar dos personagens, cenários exuberantes em meio ao caos da vida urbana e uma intensa digressão do sentido existencialista dos protagonistas – mais pela imagem do que pelo diálogo.
No filme, Bárbara, interpretada por Geneviève Grad e dublada por Lilian Lemmertz, é uma culta mulher francesa, com graduação em Decoração e História da Arte, que vive em São Paulo em um simples apartamento com outras duas amigas, Ana Lúcia (Adriana Prieto) e Mariazinha (Rossana Ghessa). As três trabalham numa firma de contabilidade e são frequentemente assediadas, moral e sexualmente, pelo seu chefe. Certo dia, após um encontro negativo com seu chefe, Bárbara conhece uma mulher que a convida para um bordel de luxo e promete a ela e às amigas que ganhariam, pelo menos, dez vezes mais do que se continuassem trabalhando no escritório.
Ainda receosa, Bárbara e as outras companheiras de apartamento chegam a ir ao bordel, porém ficam incomodadas com o fato de que seriam constantemente expostas para os homens que, no fim das contas, eram quem decidiam o destino de suas noites. Vale lembrar que seis anos antes, em Noite vazia, era justamente isto que acontecia: a monotonia das relações urbanas era representada a partir de uma visão masculina, não feminina como acontece em O Palácio dos Anjos.
O Palácio dos Anjos tem como pontos fortes a qualidade estética e a protagonização de suas personagens.
Khouri se distancia dessa abordagem masculina quando oferece às três personagens uma escolha e o protagonismo da sua própria história. Ao invés de se submeterem ao papel de subserviência de seus corpos em um lugar dominado por homens (seja num escritório, ou mesmo num bordel em que ficavam expostas aos homens), Bárbara resolve criar seu próprio espaço no apartamento onde viviam. Porém, conforme a demanda e os ganhos aumentam, a relação entre as três companheiras começa lentamente a desmoronar, e outros embates existencialistas presentes em cada uma delas são colocados em pauta.
É interessante notar que, ao longo da narrativa, tudo é intencional. As constantes imagens dos olhos abatidos da personagem de Geneviève ao olhar para um navio atracando em um porto demonstra o seu desejo em perseguir seus sonhos, a sua chegada a São Paulo e, por fim, a derrocada investida em querer ter domínio numa sociedade machista e patriarcal. Além disso, é importante contextualizar que naquele momento, em especial na primeira metade da década de 1970, uma das grandes pautas feministas era a questão da liberação sexual do corpo feminino.
Dentro deste contexto, o filme de Khouri consegue envolver o público dentro de uma trama bastante envolvente e dinâmica, longe do lugar comum da prostituição vista sob um viés masculino e com a potência de uma protagonista que, mesmo forte, tem nuances de dúvidas que sobressaltam a vista quando analisamos com frequência seu olhar desolado. Um dos pontos fortes do filme, por exemplo, é a relação que Bárbara mantém com a esposa de um de seus clientes, interpretada por Norma Bengell. Longe da erotização que poderia se imaginar numa trama dirigida por um homem, no entanto, esse relacionamento entre as duas parece ser mais uma potência de desfecho da personagem do que o uso do artifício lésbico em prol do espectador masculino heterossexual.
Embora existam pontos na narrativa que merecem – e devem – uma discussão mais aprofundada nos tempos atuais, como a “escolha” da prostituição, ao invés de uma luta por equidade salarial e respeito no ambiente de trabalho, o filme de Khouri consegue ter relevância por sua qualidade estética e pela protagonização das personagens, em especial de Geneviève.
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