O cineasta espanhol Jaume Collet-Serra vem construindo, sem grande alarde, uma obra que merece ser acompanhada mais de perto e já anuncia o surgimento de um autor. Transitando entre o terror (A Órfã) e o suspense (Águas Rasas), seus filmes não são nem um pouco genéricos, embora, na superfície, aparentem ser formulaicos e até descartáveis. O Passageiro, em cartaz no Brasil desde a semana passada, não escapa a essa regra.
Liam Neeson, mais uma vez, vive o papel de um pai de família que, meio a contragosto, assume o papel de herói em uma trama de ação. Acontece que, em O Passageiro, a escolha de seu nome para viver o protagonista parece ser uma opção quase metalinguística. Collet-Serra, cinéfilo inveterado que é, se apropria da imagem sedimentada do ator irlandês, astro da franquia Busca Implacável e com quem já trabalhou em Desconhecido, para brincar com o imaginário do público. Neeson, neste novo filme, é quase uma citação a si mesmo.
Michael McCauley, personagem central da trama, é um ex-policial que hoje sustenta a família como agente de seguros. Aos 60 anos, ele ainda lida com dificuldades financeiras e reluta em admiti-las para a mulher, Karen (Elizabeth McGovern), e o filho, Danny (Dean-Charles Chapman), prestes a ingressar na universidade e aumentar ainda mais as despesas. Nascido na Irlanda, ele se digladia com um ideal de honra e virilidade masculinas que trouxe de sua cultura ancestral.
Liam Neeson, mais uma vez, vive o papel de um pai de família que, meio a contragosto, assume o papel de herói em uma trama de ação.
Tudo muda quando recebe do chefe, mais jovem do que ele, a notícia de que está demitido. É o início de um longo dia de cão. McCauley, humilhado, teme assumir o fracasso e, relutante, toma o trem que a levará de Nova York para casa, sem saber como dará a notícia a Karen e Danny.
Durante o trajeto, o personagem é surpreendido por uma mulher misteriosa (Vera Farmiga), que lhe faz uma proposta tentadora em troca de US$ 100 mil: identificar no trem um passageiro que carrega uma bolsa, para nela colocar um rastreador. Algo simples, aparentemente.
Ao fraquejar, e aceitar a proposta, McCauley desencadeia uma série de acontecimentos absurdos que, pensados à luz da razão, fazem pouco ou nenhum sentido. Desafiam a verossimilhança.
Acontece que Collet-Serrat tem admirável talento na condução da narrativa, com uma mise-en-scène afiada, imprimindo uma atmosfera ao mesmo tempo frenética e claustrofóbica. Assim como o espectador, McCauley não sabe quem procura, e por quê. E quando se arrepende, é tarde demais: o pacto está feito.
O Passageiro guarda evidentes semelhanças com alguns clássicos de Alfred Hitchcock, como 39 Degraus e O Homem Que Sabia Demais. São filmes sobre homens comuns, com vidas aparentemente triviais, que acabam sendo aprisionados por teias de forças que não conseguem decifrar, conspiratórias, algo diabólicas. Resta-lhes sair da passividade e confrontar o obscuro, o mal. Trata-se, aqui, de uma jornada interna, principalmente. McCauley enfrenta, sobretudo, seus medos. A ameaça de não ser o homem que sempre pretendeu ser.
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