Nada é facilmente previsível no primeiro longa-metragem de ficção de Arnaldo Jabor. Com uma abordagem arquetípica quase que junguiana, Pindorama (1970) muito se assemelha aos demais filmes produzidos na terceira geração do Cinema Novo: um filme simbolicamente político que tenta entender historicamente a formação do povo brasileiro. É essencial entender a angústia que permeava os produtores de cinema deste período em específico para que se possa entender o próprio filme.
A instauração do Ato Institucional número 5 em 1968, popularmente conhecido como AI-5, mudou radicalmente o espaço na produção da arte e cultura no país, em especial dessa geração que se formou pouco antes da ditadura civil-militar de 1964. Em meio à suspensão de direitos civis, uma censura nada arbitrária, prisões e tortura, a produção artística no período se via um tanto comprometida. Em Pindorama, isso é visível. Nada no filme é trazido ao espectador de bandeja.
No longa, D. Sebastião, fundador da cidade fictícia de Pindorama, juntamente com a sua esposa, recebem a ordem do rei para algo que subentende-se ser importante: domar a população. Em outro momento, o governador das terras, D. Diogo, faz um discurso em que claramente se apresenta como um desserviço, mesmo diante do seu cargo. “Essa gente devia me matar e me comer aos pedaços. Se soubessem das minhas bandalheiras!”, reflete o político em voz alta. O povo, inerte e totalmente alienado, responde a todas as declarações tenebrosas do líder com um: “Viva! Governador!”.
Neste ponto do longa é que se percebe a posição brechtiana do produtor em querer que tudo pareça explícito ao espectador, ou seja, como numa peça de teatro em que todas as vozes, embora oniscientes, não se dão conta de si mesmas. Isto é ainda mais visível quando, em um jantar, D. Sebastião, D. Diogo e suas respectivas esposas discutem sobre os revoltosos. Sem saber sobre a vontade do amigo em querer rebelar-se contra a Coroa, D. Sebastião o abraça como uma forma de amizade.
É aí que chega Gregório (uma bela homenagem ao próprio Boca do Inferno, Gregório de Matos), um representante de todas as artes. O poeta, então, declama uma cantiga sobre as misérias de seu povo e sua própria condição; chama um amigo ao seu lado e encena a relação entre os espectadores, no caso, D. Sebastião e D. Diogo. Ao final, ironiza a situação, como se soubesse que um tramava secretamente contra o outro. É neste momento que o próprio D. Sebastião interrompe o poeta: “Obrigado, homem! Você me fez entender tudo”, e põe-se a espancar D. Diogo.
‘Pindorama’ representa um tempo em que o cinema brasileiro era mito, dor e lama.
Depois deste ponto do longa, nenhum dos principais personagens parecem dispostos de razão. Na luta a favor da Coroa, D. Sebastião, em certo momento, parece desolado porque, sem que se desse conta, pôs-se contra o próprio povo, a quem tanto defendia. Na cena final, quando se encontra com Gregório já morto, o comandante chora e grita e o leva pelos braços, como se nunca houvesse atrito entre as suas convicções.
É neste contexto que, embora nenhum personagem do filme de Arnaldo Jabor tenha uma datação histórica verdadeira, se identificam com arquétipos da própria sociedade dos anos 1960. D. Sebastião, um eterno defensor do povo apesar de sua lealdade à Coroa, referia-se aos próprio militares. Depois há D. Diogo, o governador, uma clara referência à classe política que pertencia à elite burguesa, em sua morte, defendia: “Posso morrer, mas sempre haverá outro no meu lugar”, como se profetizasse que, mesmo que não estivesse mais ali, toda a corrupção do seu caráter ainda iria dominar a politicagem.
Por fim, Gregório, a representação completa do artista inconformado, anárquico e perpetuamente a favor do povo, sofre a condição do próprio Cristo em sua morte quando é apedrejado até mesmo pela população, a qual tanto defendia. No fim da narrativa, D. Sebastião, conhecido como o “Jaguar” por ter sobrevivido aos Tamoios, volta-se contra o novo governador, intimida todo o povo e, ao deparar-se com a figura de Gregório morto, apavora-se e grita irracionalmente – como se a própria figura do governo militar ao censurar a cultura.
É certo que, à parte de todo o espetacular simbolismo de Jabor na narrativa em frente a censura militar, muito pouco resta quanto à qualidade do filme. Todas as cenas em que os personagens interagem são frontais e, mesmo o mise-en-scène mais complexo, ainda é problemático. Em entrevista trinta anos depois, Arnaldo Jabor creditou toda a má qualidade do filme à sua primeira experiência como diretor, visto que era uma produção independente, na época patrocinada pela Columbia Pictures.
Diferente de A Opinião Pública (1967), que tinha um contexto urbano, Pindorama trazia um outro universo de simbolismos rurais que, apenas de sua intencionalidade, não trouxeram tanto apreço do público, nem da crítica. Apesar disso, foi concorrente à Palma de Ouro de 1971, sem vitória. Por outro lado, seu apreço histórico é memorável.
Como Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, e, principalmente, O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha, toda a produção alegórica da época que tentava entender a identidade brasileira corria o risco de não ser entendido por ninguém. A primeira ficção Jabor não foi diferente, mesmo com todo o glamour proporcionado pela produção de Walter Hugo Khouri, da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. É o retrato, enfim, de um tempo no cinema brasileiro em que tudo o que havia era o mito, a dor e a lama.
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