Se fizermos a genealogia do cinema do diretor norte-americano Robert Zemeckis, será inevitável identificar laços de parentesco com as obras de pelo menos dois realizadores seus conterrâneos: Frank Capra e Steven Spielberg. Com o primeiro, realizador de clássicos hollywoodianos como A Felicidade Não Se Compra e Aconteceu Naquela Noite, o diretor vencedor do Oscar por Forrest Gump – O Contador de Histórias tem o apreço por narrativas que se aproximam de fábulas realistas.
Nelas, a busca pela autorrealização se dá por meio de uma jornada ao mesmo tempo transcendente e pragmática. Já de Spielberg, com quem mantém uma parceria de longa data, ele parece ter herdado, ou assimilado, o apreço pelo que há de mágico no triunfo do espírito humano, sem falar da recorrente vontade de discutir as múltiplas facetas do sonho americano, em tudo que ele tem de possibilidade e mito.
Talvez por isso que não surpreenda que A Travessia, embora seja a história de um francês, revela-se ao longo da sua projeção uma das mais contundentes defesas da mística em torno da ideia de que os Estados Unidos são a terra das oportunidades, onde qualquer projeto pode se concretizar se movido por uma busca sincera pela felicidade. Se partilhamos dessa certeza ou não, isso já são outros quinhentos.
O filme, desde ontem em cartaz no cinemas brasileiros, conta a história do equilibrista Philippe Petit, que se tornou mundialmente conhecido por por ter esticado um cabo e atravessado o vão entre os terraços das duas torres do World Trade Center nos anos 1970.
Essa história fantástica não é estranha ao cinema. Em 2009, O Equilibrista, de James Marsh, tratou do feito de Petit e levou o Oscar de melhor documentário. Portanto, recontá-lo em uma versão ficcionalizada poderia ser um projeto muito arriscado, sem muito propósito. Acontece que Zemeckis não é um realista, e não se aproxima da jornada de Petit por interesse histórico. O que nela o fascina é sua dimensão épica, quando não onírica.
Acontece que Zemeckis não é um realista, e não se aproxima da jornada de Petit por interesse histórico.
O diretor se apropria da epopeia do francês mais interessado de transpor para a tela grande a paixão que o leva a materializar algo em princípio impossível, arriscado demais. Ele se interessa pelo sonho americano do equilibrista, retratado como uma figura chapliniana, e profundamente cinematográfica, nada realista. Talvez por conta disso que o filme tenha dado tão certo.
O talentoso Joseph Gordon-Levitt (de 500 Dias com Ela) se aproxima do personagem de forma quase circense, lúdica, sem compromisso com a verossimilhança. O documentário já fez isso de maneira competente. Seu Petit fala inglês com sotaque francês, usa uma peruca que por vezes parece falsa demais, mas transborda verdade. Justamente por não ser uma leitura realista do personagem, que narra sua façanha do alto da Estátua da Liberdade como se fosse um contador de fábulas.
Zameckis, que também dirigiu a Trilogia De Volta para o Futuro, não economiza artifícios, uma de suas marcas registradas. E nos transporta no tempo e no espaço para o alto das Torres Gêmeas, um lugar que não existe mais. E é dessa não existência, do fato de elas terem sucumbido aos ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001, que o filme tira sua força. E da extraordinária fisicalidade das cenas da travessia que dá nome ao filme, vertiginosas e encantadoras ao mesmo tempo, fazendo um soberbo uso da tecnologia 3D.
O Petit que vemos na tela não pretende ser o que continua vivo, a viver em Nova York, hoje com 66 anos. É um personagem re-imaginado, que nos leva às alturas de um filme baseado em fatos reais que não poderia ser mais fantasioso. E esse é seu grande mérito. Capra e Spielberg dariam suas bênçãos.
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