Quando o jornalista Steve Rose publicou, em julho deste ano, seu polêmico texto sobre pós-horror no jornal The Guardian (leia mais), os fãs do gênero reagiram mal. Muitos acusaram a discussão de ser elitista e não ter qualquer sentido. Teve gente que optou por simplesmente fingir que ela não existia. O jornalista brasileiro Carlos Primati, embora tenha suas ressalvas com o termo, fez o contrário e abraçou o tema.
Pesquisador pioneiro do cinema de horror nacional, o especialista esteve em Curitiba nesta semana para ministrar um curso sobre horror clássico, horror moderno e pós-horror durante a programação da Grotesc-O-Vision. Conhecido por ter organizado o lançamento dos DVDs do Zé do Caixão e ter editado a Revista Cine Monstro, ele trabalha como tradutor para a editora Darkside e atua como curador de diversas mostras do cinema de gênero no país. Também mantém a página Filmoteca do Horror Brasileiro, no Facebook, especializada em títulos nacionais do gênero.
Na entrevista abaixo, ele comenta a polêmica do pós-horror e o terror no cinema brasileiro:
A Escotilha » Qual é sua percepção sobre o pós-horror?
Carlos Primati » Não sou contra a definição de pós-horror. Vejo bastante gente que se opõe à criação de um rótulo, mas as pessoas estão perdendo o ponto principal, que é o de que, em pleno século XXI, ainda exista uma possibilidade de lançar um olhar novo sobre o gênero. O que para mim não é claro é afirmação de que pós-horror não é horror. Acho um jogo bobo de nomenclatura para o cinema que é uma arte coletiva e muitas influências.
Você defende que existe uma nova onda de filmes que podem ser caracterizados como pós-horror?
Existe uma parcela de filmes, que não são de hoje, que não estão interessados nas histórias de monstros tradicionais. Essas obras apresentam narrativas que envolvem mais o espectador e que ignoram regras como a necessidade de dar medo no público. Temos exemplares assim nas décadas de 1940 e 1960, quando surge o horror moderno. O pós-horror não quer dizer que exista uma geração de cineastas que estejam negando o horror.<
O pós-horror não quer dizer que exista uma geração de cineastas que estejam negando o horror.
Como devemos pensar o horror conceitualmente?
A fórmula é a dos clássicos, com o filme de monstro. É assim que o gênero começa no cinema, herdando uma iconografia da literatura, com seres como o Drácula, o Frankenstein, o Corcunda de Notre Dame e o Fantasma da Ópera. Esses primeiros filmes são centrados na cultura do monstro. São obras que foram assustadoras. Há relatos de pessoas que saíram correndo do cinema quando viram o Drácula, de Bela Lugosi. Hoje, isso não assusta ninguém, o que não significa que o filme deixou de ser do gênero de horror. Essa questão do medo nos filmes o gênero precisa ser repensada. Vi muitas pessoas que argumentaram que o filme não é horror porque não assusta. Esse medo é algo que é comunicado para a plateia por meio da reação dos personagens. Nem sempre é algo que o público sente.
Vale a pena pensar esses limites de gênero?
Minha única necessidade de definir o que é o horror é saber com quais filmes eu vou trabalhar. A classificação de gênero é absolutamente irrelevante para quem é o consumidor. Cada um faz o que quer, mas me sinto incomodado quando um cara leigo e mero fã de horror, geralmente um chato por natureza, escolhe um filme qualquer e começa a bradar que aquilo não é terror. Desenvolvo um trabalho para criar um cenário amplo que abrange várias vertentes do horror.
O que atrai as pessoas para o horror?
Grosseiramente, existem dois tipos de pessoas: a que vai descobrir que o horror é o canal de entrada para se fortalecer para a vida e a que prefere nem pensar nisso. Acredito que a grande função do gênero, se é que tem alguma, é de nos fazer refletir sobre a morte. O cinema de horror oferece maneiras divertidas, trágicas e perturbadoras para enfrentar nosso medo de morrer. É difícil ver o terror banalizando o tema, porque seu papel é dimensionar e espetacularizar a morte. A emoção de ver um filme assim faz com que você, mesmo que inconscientemente, esteja envolvido num processo se sentir mais vivo ao assistir a um filme de terror. Acaba sendo uma celebração da vida.
Isso não ocorre em outros gêneros?
Em um filme policial, de super‐herói ou de guerra existe, grosso modo, uma banalização da morte. Nas perseguições policiais, há pessoas atropeladas, batidas de carros e bandidos mortos. Nos filmes de super‐herói, derrubam um prédio inteiro sem que se pense sobre quem morreu ali. Não existe a individualização da morte. Os filmes do James Bond não te deixam pensando no capanga que morreu triturado. A nobreza do horror é não banalizar, mas levar o espectador a pensar o quão horrível é o ato de morrer.
Nos filmes de super‐herói, derrubam um prédio inteiro sem que se pense sobre quem morreu ali. Não existe a individualização da morte.
O filme de horror é um ato político?
Tudo é um ato político. A diferença do horror está na abordagem. Se você vai fazer um drama sobre estupro, a chance de virar um filme pesado e desagradável é grande. Não quer dizer que não seja válido e não deva ser feito, mas você estará transformando um fragmento da vida real em filme de aspecto documental. Pode colocar o assunto em discussão, mas será de uma maneira óbvia e objetiva. No cinema fantástico, uma menina que é estuprada e morta pode voltar do além para se vingar dos estupradores. Ali há uma justiça poética, que dá o recado de maneira intensa sobre quem são os vilões. Também corrige um erro da vida real ao permitir que ela volte do túmulo para se vingar.
Você tem um acervo importante de itens relacionados ao José Mojica Marins?
Na verdade, tenho materiais que uso para pesquisar. Tenho os roteiros que ele assinou e alguns do [escritor Rubens Francisco] Luchetti. É tudo xerox, mas é importante ter guardado…
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E como surgiu seu interesse pelo Mojica?
Você quer saber mesmo?
Claro. Você ajudou na produção da biografia escrita por André Barcinski e Ivan Finotti, organizou a coleção de DVD com os filmes do Mojica e escreveu um monte de coisas sobre o Zé do Caixão. Se hoje eu conheço a obra dele, muito se deve a você…
Então tudo bem, eu conto. Quando eu tinha uns 22 anos, eu via muito filme e publicava críticas em jornais locais. Queria ser crítico de cinema, mas não queria dizer obviedades. O horror parecia um bom caminho para me especializar porque, na minha cabeça, era uma área meio abandonada. Passei uns dois anos vendo filmes de terror. Assisti a todos os filmes de terror de uma videolocadora que eu frequentava. Lá tinha uma fita do Zé do Caixão que eu nunca tinha visto. Era “Delírios de um Anormal”, um filme meio ruim dele. Pensei que poderia dar umas risadas com aquela “porcaria”, imaginando que seria como um daqueles filmes mexicanos do Boris Karloff. Aí levei para casa e fiquei embasbacado com a obra. Era um puta negócio louco e surpreendente.
Sabe que essa também foi minha reação quando vi um filme dele pela primeira vez?
Encontrei muita gente que foi ver filme do Zé do Caixão para tirar sarro. Faço parte de uma geração, que inclui mais umas dez ou quinze pessoas, que tem a mesma faixa de idade e uma história parecida. Não consegui ver os filmes do Mojica no cinema e eles não passavam na televisão. Qualquer opinião que você fosse ouvir de pessoas mais velhas era de que aquele era um sujeito ridículo. O VHS nos deu oportunidade de ir além do senso comum. Eu poderia ir na locadora, pegar os filmes dele e ver o que era verdade. Um grande número de pessoas passou por essa experiência e percebeu que aquele era um cara a ser resgatado porque merecia mais atenção.
E como se envolveu com a obra dele?
Fui procurar o Mojica pela primeira vez e disse que queria escrever um livro sobre a carreira dele. Não tinha ideia de mercado literário, pois eu era um moleque. Ele disse que já tinha um cara escrevendo um livro sobre sua trajetória. Era o Barcinski, que eu conhecia por colaborar na Revista General, que ele também escrevia. Sempre fui muito sério em pesquisa e o Mojica percebeu que eu estava interessado em fazer um levantamento da obra dele. Aí ele comentou do meu trabalho com o Barcinski e o Finottti e acabei responsável por cuidar da Mojicografia, que tinha toda a obra dele, com os filmes, quadrinhos e peças de rádio. Nunca me senti como o cara que resgatou o Mojica. Sempre senti que estava pagando uma dívida.
Como isso evoluiu para a pesquisa com o resto do cinema nacional de horror?
Pensei que poderia expandir a investigação para o resto do horror brasileiro. Comecei a fazer um levantamento bem formiguinha. Vi “Enigma para Demônio”, do Carlos Hugo Christensen, e outros. Quando já tinha o Canal Brasil, por volta de 2002, vi “Quem tem medo do lobisomem”, que é um filme maravilhoso. Decidi que iria fazer um levantamento completo do cinema de horror brasileiro. O recorte eram longas‐metragens profissionais, não queria saber de filmes em VHS no interior de Minas Gerais. Queria filmes feitos em películas e projetados no cinema. Foi um projeto complicado, mas prazeroso.
Por quê?
Porque fui reconstruindo as regras do horror. Comecei a resgatar filmes que não teriam importância se fossem estrangeiros, mas por serem brasileiros e fazerem parte de um mapeamento inédito, foram incluídos. Filmes com uma abordagem diferente, uma cena com macumba ou espírito que é vingativo tinham um pé no horror. Também apareceram comédias de horror e filmes experimentais, como os do Bressan, que foi uma descoberta incrível. Por volta de 2006, eu tinha o levantamento praticamente publicado com 150 filmes mais ou menos. O surgimento do Rodrigo Aragão com o Mangue Negro mudou um pouco a lógica, porque o filme dele era feito com amigos e quase sem orçamento, mas tinha muito potencial para ser ignorado. Nesses últimos dez anos, o horror brasileiro foi ficando cada vez mais na moda. Hoje você só ouve falar de “Trabalhar Cansa”, “As Boas Maneiras”, “O Rastro”, “Isolados” e “Animal Cordial”. Todo mês sai um filme novo de horror brasileiro. Fico super feliz.
Nunca me senti como o cara que resgatou o Mojica. Sempre senti que estava pagando uma dívida.
Qual é a cara do cinema de horror brasileiro?
Por incrível que pareça, nosso cinema é existencialista, introspectivo e ligado aos problemas pessoais e individuais. Às vezes com viés pessoal, vinculado à solidão e a amargura. Muitos desses vem do nordeste. Fico contente em ver uma nova leva de realizadores que fazem coisas que muita gente vai falar que não é terror, mas eles reivindicam o papel. É o caso de Guto Parente, que fez um filme maravilhoso chamado “A Misteriosa Morte de Pérola”; Petrus Cariry, que fez “Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois”; e Frederico Machado, que vai lançar em circuito comercial um filme chamado ”Lamparina da Aurora”.